SOBRE ONTEM À NOITE >> Carla Dias >>
Passei no supermercado, ontem à noite, porque já era tarde e eu não
queria cozinhar o jantar, precisava do “pronto para consumo”. Fiquei mais de
vinte minutos na fila do caixa até dez volumes. Vai entender... Nem sempre
menos significa economia de tempo.
Entretanto, algo me chamou a atenção de um jeito de quando vemos a
cortina subir e revelar o palco. O supermercado estava cheio de namorados e
namoradas ainda desencontrados dos seus respectivos afetos. As mulheres, quase
todas e minoria, com garrafas de vinho nas mãos. Os homens, a maioria no
supermercado em dia de afirmação de amor declarado e assumido, seguravam vasos
e buquês de flores. Alguns deles também abraçavam garrafas de vinho.
Um olhar meu captou a visão colorida de uma sequência de quatro caixas
nos quais repousavam, sobre a esteira, vasinhos de begônias. Nunca vi begônias dispostas
dessa forma, principalmente à beira das nove horas da noite do Dia dos Namorados.
Em outra fila, um moço segurava um vaso de margaridinhas, entre outros dois que
seguravam vasinhos com begônias. Parecia um jardim de beira de caixa de
supermercado.
Há uma variedade de comerciais nos educando a pensar que o carro tal,
a roupa tal, a casa tal e outros tantos tais são o que fazem o amor valer a
pena. Se a visão que tive ontem no supermercado fosse um comercial, bom, as
begônias se transformariam no produto mais valioso e capaz de mostrar amor de
todos os tempos. O vinho já é celebridade.
Quando estava saindo do supermercado, avistei a banca das flores. Dois
ou três vasinhos de begônias ainda estavam lá, prontos para serem abduzidos
pelo amor de dia de namorar contando com a benção do calendário. Dois ou três
mocinhos praticamente os sequestraram. Pensei no rapaz das margaridinhas...
Acho que ele foi o sortudo que comprou o último vasinho.
O mais interessante foi a visão alcançada logo após a esse pensamentos
sobre begônias e margaridinhas. Em pé, defronte à bancada das flores quase
vazia, alguns moços estavam prostrados. Um alisava o cavanhaque, olhar soturno.
Outro coçava a cabeça, uma feição meio desesperada. O outro estava,
definitivamente, aborrecido. Todos eles observavam o que sobrara na bancada das
flores: orquídeas. Os atrasados tiveram de gastar um pouco mais para a
felicidade das suas moçoilas. E sem desmerecer as begônias ou as margaridinhas.
Atravessava a rua e então escutei uma voz afinada, bonita. Em um dos
carros aguardando que o sinal abrisse, estava um moço cantando para a moça,
sentada ao lado dele, uma canção de amor... E bem alto. Desculpem-me, mas apesar
de o gesto ter sido bonito, a música não era. Então, escolho não citá-la, assim
cada um pode escolher a sua trilha sonora para a cena.
Enquanto jantava a comida pronta, confesso que não conseguia parar de
pensar em algo que um amigo me disse sobre como é difícil presentear uma
mulher em um dia desses, como se somente ela fosse a parte celebrando a data.
Se ele tivesse visto a popularidade das begônias de supermercado, da dedicação
dos moços em mantê-las bonitas até chegarem ao seu destino, às mãos e ao
coração de suas moças, talvez ele pensasse diferente. É claro que muitas de nós
adoram ser paparicadas, que esperam ganhar presentes fantásticos, mas a maioria
fica feliz com demonstrações de afeto, com presentes-begônias e até bilhetes de
amor escritos em post-it.
Não me apego ao calendário para celebrar meus afetos. Para mim, todo
dia é dia de. Isso não significa que eu não respeite e aprecie a celebração
alheia. Ontem, especialmente, compreendi que não há nada de negativo em um pouco
mais de alegria, de jardins particulares, de vinhos diversos, de canções cantadas
nos semáforos, de supermercado abarrotado de amantes atrasados para seus
encontros.
E que as orquídeas são flores dos mais atrasados.
Comentários
Adorei sua escrita e sorri com tua crônica!
Um beijo.
Já sendo incoveniente, eu gostaria de saber se poderia colocar sua crônica como exemplo no meu trabalho de base das Olimpíedas de Língua Portuguesa.
É claro que colocarei seu nome como autora e darei os devidos créditos, é o mínimo. Então, posso?
Yohana... Agradeço a gentileza sua em ler meu texto. Obrigada!
Anônimo... Que bom que você gostou da crônica! O dia-a-dia é um balaio de inspirações. E sinta-se à vontade para incluir a crônica no seu trabalho, contanto que me deixe lê-lo depois :) Sou curiosa.