MICOS >> Zoraya Cesar
Aquele que ri de si mesmo é, antes de tudo, um iluminado. Se tem coragem de contar aos amigos, então, é quase um avatar. Em homenagem aos amigos miquentos, conto algumas de suas aventuras – deles, apenas, que não sou tão iluminada assim.
I – Distraída - Estava pronta para sair e mais atrasada que o Coelho Branco, só faltava a calcinha, onde mesmo botara a calcinha, meu Deus? A pressa era tanta que ela desistiu de procurar, vestiu outra e saiu correndo. Parou rapidamente para conversar com o porteiro sobre a falta de água no prédio, pediu informações ao guarda do metrô e, muito ciosa de seus saltos altos, da roupa elegante e dos olhares que recebera desde que saíra de casa, desfilava tranquilamente pela plataforma da estação. Encontrou o chefe na recepção, com quem trocou algumas palavras inteligentes, entrou no elevador e só então, ao se olhar no espelho, descobriu, horrorizada, onde estava a calcinha perdida: pendurada no cinto do vestido preto, a calcinha, vermelha, acenava escadalosamente para o mundo.
II – Preto no branco – Val de Ogun labutou como cambono em um Centro Espírita Umbandista durante um ano antes de lhe ser permitido incorporar um Preto Velho. Na noite que antecedia à sua estreia, exausto após os rituais preparatórios, chegou em casa, arrancou a roupa quase pela cabeça e dormiu.
No dia seguinte, vestiu a mesma calça da noite anterior e foi para o Centro. O templo, imaculadamente branco do chão ao teto, estava repleto e a energia pulsava fortíssima. Aos primeiros toques do atabaque a Entidade de Val de Ogun desceu sem nem esperar a ordem do chefe do terreiro e o fez dançar sozinho, no centro da roda.
O médium incorporado perde o controle mas não a consciência. Val percebia que algo escorregava pela sua perna, por dentro da calça, e, agoniado, dançava ainda mais freneticamente. A “coisa” foi escorregando até que, depois de um movimento mais brusco, a cueca que ele, na pressa e no cansaço, esquecera dentro da calça, voou para fora num looping perfeito e pousou, visível, preta e indiscreta na frente de toda a audiência, de todos os outros médiuns, do Pai de Santo, do mundo, bem no meio da roda.
III – Carnaval – Sem dinheiro, mas criativo, Lico B. colou uma cartolina com papel laminado em formato de foice num cabo de vassoura e vestiu-se todo de preto. Depois de beber todas e mais algumas, resolveu visitar a Tia, que morava pertinho de onde se concentrava o bloco.
Encontrando a porta aberta, entrou gritando a plenos pulmões, “eu sou a Morte e vim lhe buscar, venha, veeeenhaaaa...”, e dançava como um derviche bêbado no meio da sala. A pouca sobriedade que lhe restava dizia que algo estava errado, mas ele só se deu conta quando a Tia, morta – não literalmente, claro – de vergonha, puxou-o para fora do apartamento. Não o dela, que ficava em frente, mas do vizinho, que recebia o apoio dos parentes por conta de seu filho, que acabara de ser hospitalizado algumas horas antes, em estado grave.
(Não se preocupem, o rapaz se recuperou. Lico B., não).
IV – Roupa nova - A dieta, tão sacrificante, finalmente mostrara os resultados, e Lucia, orgulhosa, resolveu se dar uma roupa nova para comemorar. Não demorou muito e seu olhar acutíssimo (ah, esses superlativos) encontrou a minissaia mais querida do mundo: cor de rosa, rendada, eu juro que não queria usar esse adjetivo, mas não tenho saída: fofa.
A vendedora olhou para ela e foi taxativa, ia pegar o tamanho P. Foi a glória! Lucia quase se ajoelhou, de puro êxtase.
No corpo, a roupa se revelou uma microssaia curtíssima, cujo tecido deformável fazia com que Lucia parecesse ter sido embalada a vácuo por uma máquina com defeito. Chamou a vendedora, que olhou para ela e quase teve uma síncope:
- O que a senhora ‘tá fazendo? Isso não é uma saia, é uma mini blusa! Estragou toda...
Lucia fechou as cortinas, tirou a roupa já deformada, molenga e amarfanhada, deixou-a no balcão e saiu correndo.
V – Impaciência - O salário famélico e o desinteresse dos alunos levaram a intolerância de Walmir a níveis quase folclóricos.
Durante uma aula, ao dar o clássico exemplo de trocar o feminino pelo masculino, ouviu a seguinte barbaridade:
- Não to entendendo nada. Como é que eu digo? Vou ao praio? (sic, sic, sic, pelo Amor de Deus).
Na turma subseqüente, última da noite, havia uma menina que, em todas as aulas, olhava fixamente para ele, sempre ostentando um sorriso de lábios fechados, permanente e imutável. O tempo passava, Walmir falando, falando, e a aluna ainda sorrindo. Aquilo foi dando nos nervos já não muito equilibrados do nosso amigo, até que ele explodiu, vociferante:
- ‘Tá pensando que eu sou palhaço? Que estou aqui de brincadeira? ‘Tá rindo de quê?
Silêncio. Sempre sorrindo, mas com os olhos cheios de lágrimas, ela explica, envergonhada:
- Não professor, desculpe. É que eu sofri um acidente, sabe e fiquei assim...
V - Ainda tem mais, muito mais. Tem o amigo que tomou todo o mescal que encontrou no México e se perdeu num banheiro; o estômago da amiga roncando altíssimo durante a Missa; o flato (ficou elegante isso, hein?) que escapuliu barulhentamente durante uma reunião de trabalho...
Assim que os personagens dessa crônica pararem de me ameaçar eu conto mais. Você tem alguma história pra me emprestar?
Comentários
Parabéns!
você tem razão - iluminados. Esses protagonistas geralmente são pessoas incríveis. E mais uma vez parabéns: você trata muito bem as palavras. Beijo.
'a calcinha, vermelha, acenava escadalosamente para o mundo', isso é perfeito; perder-se no banheiro é surreal... Enfim, adorei! Vou compartilhar depois. Bjs
Zoraya segue a espinha dorsal estrutural básica de uma crônica, ou seja, é concisa, simples, sem conotações exageradas ou analogias complexas. Mesmo que tenha uma linha literal, a poesia consome a criação de suas ideias, revelando o que pensa, mesmo que seja nas entrelinhas. Ao introduzir um trocadilho, não se faz soberba. É elegante.
Com argúcia tece “comentários” do cotidiano. Ainda que com a pequena densidade psicológica exigida pelo gênero literário, os personagens são intensos, quer pela dramaticidade que os enreda, quer, nesse novo momento da autora, pela comicidade que os toma.
No diálogo que sustenta conosco, leitores, a cronista se vale do álibi, fato tão importante para nos prender a uma narrativa. E isso é bem trabalhado por ela. A prosa gostosa, leve, revela-nos cenas pitorescas do dia a dia de alguém que conhecemos ou já conhecemos, pois nos aproxima de algo que algum dia ouvimos falar, ainda mais se formos os inspiradores de seus novelos.
Por sua erudição lexical, talvez a autora não consiga se aproximar da modalidade falada da língua, mas com certeza as boas intenções em contar um fato com leveza e comicidade inteligente a façam se aproximar do seu leitor de maneira bem natural, já que é despretensiosa. O pândego aqui não provoca o riso fácil, catarse dos desesperos socio-econômico-existenciais. Vem para alegrar nossos corações tão famintos de textos arejados e inteligentes.
Bem, se Zoraya Cesar não consegue a perfeição exigida pelos mais críticos no gênero, demonstra, por seu turno, uma grande vontade de acertar. E, para mim, acertou na mira.