O RIO E O AMIGO [Ana González]
Estávamos em um congresso de astrologia em New
Orleans e aproveitávamos o tempo livre para um passeio pela cidade numa tarde
ensolarada e quente. Fomos ao cais em que se encontrava um grande barco para o
passeio pelo Mississipi, o longo rio de franceses, espanhóis, ingleses, índios
e africanos e inúmeros cenários de guerras e trocas de governo, lutas. Tudo o
que sempre fez a região interessante a meus olhos na distância. Mas, confesso
que minha imaginação sempre se fixou nos navios e nos barcos a vapor andando pelo
rio, portador de histórias cheias de mistérios e casos especiais.
Estávamos no cais vendo os passeios disponíveis. Eu
não tinha tempo para o cruzeiro desejado que o amigo iria fazer no dia seguinte.
Então, ele sugeriu que entrássemos em outro barco que estava saindo naquele
exato momento. Que tal o ferryboat,
perguntou? Não deu para responder. Ele saiu correndo e me puxou. Fui. Logo pude sentir o barco se soltando e indo
pelas águas. Sensação de navegar.
À medida que íamos saindo do cais, fui olhando a
margem que ficava para trás. E a cidade foi se desenhando no horizonte, cada
vez mais bonita com o perfil dos prédios misturados a sombras. Agora, o nosso
destino era o outro lado, outro bairro. Algo a descobrir.
Mas, em certo instante, talvez no meio da travessia,
enquanto ambas as margens me pareceram igualmente distantes, entrei em uma
emoção estranha. Era algo relacionado com aquele desejo de estar no barco pelo
Mississipi, naquela viagem que eu não poderia fazer. Apareceram, então, imagens,
talvez frutos de minha imaginação, talvez informações antigas que surgiam e
conversavam entre si de forma instintiva. Desde que acordadas, se instalavam
com familiaridade: as histórias que eu ouvira, os filmes a que eu assistira.
Tudo estava lá naquele instante em que eu me debruçava no parapeito do barco,
para olhar o horizonte e a cidade se afastando. O sol era forte. Muita luz
ainda nos esperava naquele verão de dias compridos. Muito calor.
E eu entrava em um mundo só meu carregado de
memórias e sensações. Tentei falar a meu amigo sobre isso, mas acho que ele não
entendeu em que parte do meu trajeto eu estava. Ele continuava no ferryboat a caminho da outra margem
enquanto eu viajava num mundo de histórias e fantasias construídas pelos
desejos de um rio só meu, com seu passado, seus fantasmas e toda a história da
Louisiana. Uma aventura pelo
Mississipi. Assim, criei um mundo
inteiro, uma realidade própria.
Mas, ainda tive energia nessa noite para refazer com
gestos e caras o mundo de minhas fantasias, quando eu recriei o espírito que me
acompanhara à tarde. Talvez o impulso para essa cena de comédia tenha vindo da
vontade de contar para o amigo sobre minha experiência. Foi uma cena um tanto
cômica, uma encenação que se realizou para ele.
Foi um gesto de gratidão por seu companheirismo e
entusiasmo que provocaram o passeio, me presenteando com a oportunidade.
Não tenho certeza de que ele tenha entendido o
relato da experiência, mas, com certeza, ele adivinhara meu desejo inicial me levando a cruzar o rio.
Foi muita delicadeza, dentro de um comportamento intencional em que pude notar
a sua correta e contínua discrição. Toda sua. Foi singelo, foi humano demais.
Acredito que a isso se pode chamar amor.
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