NARCISO E O PRÓPRIO RABO
[Carla Cintia Conteiro]

Há certas coisas a respeito de si mesmo sobre as quais é inútil falar, podendo-se até causar o efeito contrário ao que se pretende. Qual é o ponto em alguém dizer que se acha bonito, assim, sem ninguém perguntar? A beleza está nos olhos de quem vê. Da mesma forma, embora seja praticamente imperativo hoje em dia, pelos mais diversos motivos, alardear seus próprios feitos, não adianta atribuir valor a eles, afirmando-se talentoso, criativo ou brilhante. Por mais angustiante que seja abdicar do gosto de contar a todos como o sujeito se acha maravilhoso, este veredicto pertence a quem o avalia. Certa vez, num desses reality shows que julgam os dons artísticos dos inscritos, vi um dos juízes perguntar ao candidato quem, fora do circuito da cegueira do amor familiar e da compassiva gentileza dos amigos, acreditava que ele era um artista de verdade. Este é o espírito da coisa.

Outras vezes, a pessoa se debate tentando evitar que cole em si certa reputação negativa. Alguém que brada não ser preconceituoso, geralmente está se defendendo de uma atitude suspeita. Se não, está começando ainda a emitir sua opinião: “Não sou preconceituoso, mas...”. Este “mas” entrega tudo. A ele normalmente se segue um rosário de ideias preconcebidas. Pode ser pior. A expressão “você há de convir que”, após a frase anterior, comunica a quem ouve esse discurso que se está diante não apenas de um ser carregado de intolerância, mas ainda um hipócrita que quer a admissão do outro de que compartilha da mesma visão de mundo. Tudo isso sem se dar conta de que sua estreiteza mental e seu atraso espiritual transpiram fartamente enquanto ele pensa estar trabalhando em prol da própria imagem.

Até quando o alvo da avaliação não é o espelho, a criatura pode estar mostrando o próprio rabo, invisível para si mesma a olho nu. Ao menosprezar o trabalho, a realização, as conquistas de seus rivais, em vez de denegrir quem ataca, o boquirroto pode estar entregando, a um ouvido mais treinado, sua inveja. Contudo, muita gente não sabe que ao emitir uma opinião, seja a respeito de si mesmo ou de outrem, fala mais com o subtexto do que com as palavras que saem de sua boca. Baden e Vinícius disseram muito bem em Canto de Ossanha: “O homem que diz ‘sou’ não é! Porque quem é mesmo é: ‘Não sou!’”.

A questão não é se desmerecer. Estou falando de humildade, não de auto-humilhação. Todo mundo deve saber o valor que tem. Só não precisa sair contando suas conclusões por aí. Entretanto, em caso de receber um elogio espontâneo, o mais recomendado é sorrir e agradecer. Não é hora de protestar ou refutar o cumprimento. Ademais, coisa mais tola é o indivíduo que se rebaixa para ouvir protestos seguidos de (mais) elogios tão constrangidos quanto, provalmente, artificiais.

É preciso coragem para saber qual é a aparência e o tamanho do próprio rabo, do qual provalmente se está querendo desviar a atenção enquanto a boca articula palavras de louvor a si e de espinafração ao outro. Nossa cauda pode ser muito mais feia e comprida do que jamais imaginamos. E isso não se mascara com jactância, porque mesmo fora de nossas vistas, o rabo é aparente para todas as outras pessoas.

Comentários

Caca disse…
Acho que quem precisa muito de palavras para se mostrar para os outros está carente de atitudes que façam isso por ele. Excelente crônica, Carla. Abraços. paz e bem.
É, Carla. Temos que cuidar do que falamos.
A(quela): disse…
nossa! Estava a pensar nessas coisas durante toda a semana. Ainda bem que essa ideia encontrou a medida exata de sua bela crônica!

Até divulguei no facebook! Parabéns! ;)

Alessandra Araújo
Marilza disse…
Bonito texto e verdadeiro. Vemos tantos preconceituosos negadores de si mesmos. E tantos outros com tamanha discrepância entre o tamanho do se próprio rabo versus seu orgulho.
Unknown disse…
Obrigada, Cacá!
Fico feliz que você tenha gostado.
Unknown disse…
Pois é, Eduardo... As palavras são lindas, mas perigosas.
Unknown disse…
Que bom, Lunna!
Fico tão feliz quando encontro um texto, uma música, uma foto ou qualquer outra manifestação do espírito que consiga traduzir o que trago dentro de mim em determinado momento. Muito bom saber que conseguir passar um pouquinho desta sensação para alguém.
Beijo.
Unknown disse…
É mesmo, Marilza. Hoje de manhã, sabendo que iam publicar esta crônica aqui, dei uma boa olhada no rabo antes de sair de casa :).
Obrigada.
Beijo.
Carla, querida, Vc é sempre muito espirituosa... Adoro seus textos e me divirto ainda mais com seus comentários... Excelente percepção do rabo - alheio e próprio :) Super beijo.
albir disse…
Belo texto, Carla.
Às vezes só nós enxergamos em nós mesmos certos talentos. E outras só nós não vemos o próprio rabo já famoso para todos.
Anônimo disse…
Excelente texto e reflexão. É um tema recorrente essa coisa de cada um saber a medida do seu próprio valor e de seus defeitos.

Quando sou agredido ou ofendido, deixo as palavras do agressor soarem na sala, quarto, cozinha e corredor. E principalmente na sua mente, para que ele saboreie com prazer o seu próprio amargor.

Nem interrompo, nem contesto.

As palavras denunciam mais e por si só a natureza do outro.

bjos, moça, adorei o texto.

Veleiro
Unknown disse…
Obrigada, Debora! Saudade de nossos papos longos e enriquecedores.
Beijos, querida.
Unknown disse…
Exato, Albir. É uma certa miopia caudal :)
Abraço.
Unknown disse…
Veleiro,
Quando eu crescer, quero aprender a fazer assim :)
Valeu!
Beijo.
Ricardo disse…
Palavras super oportunas em tempos de tanta auto-promoção e auto-exposição.

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