O SR. URIAS, O RONCO E O BOBBY
>> Eduardo Loureiro Jr.
Ainda estou longe de ser um grande homem, mas já começo a reconhecer um quando o encontro — o que me dá uma certa sensação de progresso.
Ontem conheci o Sr. Urias. Fui convidado para almoçar em sua casa por seu enteado, um amigo meu que me havia prometido um carneiro. Eu não gosto de carne de carneiro, talvez por haver presenciado o sacrifício de um, quando eu ainda era criança. Como pode ser gostosa a carne de um animal que a gente vê pendurado de cabeça para baixo, que é golpeado na nuca, que é atravessado por um facão e do qual se tira o couro inteiro enquanto, no chão, uma bacia recolhe seu sangue? Mas insisti tanto com meu amigo Ricardo para que ele cumprisse sua promessa de oferecer um carneiro àqueles que lhe haviam auxiliado com o projeto para o doutorado que cheguei à casa de Seu Urias e Dona Nilmar disposto a adorar carne de carneiro, pelo menos por um dia.
O Sr. Urias me surpreendeu primeiramente pelo passo lento. Hoje é tudo tão fácil e veloz que admiro quando vejo alguém andando devagar, como se não tivesse nada urgente para fazer. Só conheci uma outra pessoa que andasse tão lentamente quanto Seu Urias: Manu, um colega dos tempos de faculdade que se tornou um grande amigo e meu mais abundante parceiro musical. Manu andava — e ainda anda — tão devagar, mas tão devagar, que é capaz de vez coisas que eu, em minha pressa, não consigo: poesia, por exemplo. Você me fez flutuar, quando lhe beijei. Me senti criança, brinquei de ciranda, de amor. Coisas assim, Manu sente e escreve em pensamento enquanto anda devagar como o Sr. Urias.
Sentamos à sombra do caramanchão e, enquanto comíamos um pobre e gostoso carneiro que havia sido sacrificado naquela semana, a conversa entrou em assuntos polêmicos. Com dez pessoas ao redor de uma mesa — algumas bebendo álcool —, um tema polêmico pode ser o estopim de uma explosão e transformar um encontro de confraternização numa terceira guerra mundial. Foi quando o Sr. Urias, que me disseram ser advogado e grande apreciador de História, resolveu entrar na conversa. Preparei meu espírito para o pior: pessoas que gostam de história — mesmo com agá minúsculo, como este que vos escreve — costumam ser chatas. Mas o Sr. Urias me surpreendeu mais uma vez. Disse que o certo e o errado são relativos para nós, humanos, e só podem ser bem avaliados se comparados com o absoluto, que é a Natureza. Se algo não está de acordo com a Natureza, está absolutamente errado. Mas como tudo vem da Natureza, se algo existe é porque pode estar relativamente certo. E arrematou afirmando, acerca da polêmica, que tal comportamento não era correto, mas era aceitável.
O leitor — curioso — vai querer saber qual o assunto de nossa conversa. Não vou dizer. Se o leitor souber qual era o tal comportamento em questão, vai pensar que o Sr. Urias falou besteira. Vai fazer como o Rei Davi, que copulou com a mulher de seu soldado Urias — o bíblico — e, não satisfeito com o simples adultério, ordenou à sua tropa que debandasse, deixando Urias sozinho na linha de batalha, sacrificando o inocente marido de sua amante ao exército adversário.
A sabedoria do Sr. Urias arrefeceu a polêmica, mas logo alguém trouxe novo assunto provocador, dessa vez sobre uma política do governo. Mais uma vez, respirei fundo: aquilo não ia acabar bem. Mas o Sr. Urias, lembrando Aristóteles, comentou que se deve tratar desigualmente os desiguais, o que também encerrou o assunto rapidamente, me fazendo reconhecer que a sabedoria do Sr. Urias não era fortuita, mas podia se repetir vezes sem conta.
Quis saber mais sobre Seu Urias, e ele revelou que só fez Direito já na maturidade, que sua área de estudo na juventude era a Geologia. E me pareceu muito correto que, antes de se conhecer a Justiça, é conveniente conhecer o chão onde se pisa e em que já pisaram alguns bilhões de seres humanos.
Hoje, na fila do supermercado, folheei uma revista para me distrair da distância até o caixa. E fiquei me perguntando o que o Sr. Urias diria sobre uma polêmica que tomou conta da mídia durante a semana passada. Porque só mesmo investido da sabedoria do Sr. Urias para resolver polêmicas com quem posa de salvador da mátria, mesmo começando frases com pronome oblíquo átono.
O problema com a gente — enquanto humanidade — é que, quando a gente ronca, sempre está dormindo. E, vez por outra, estamos sujeitos a acordar mal-humorados, incomodados com um barulho externo, inconscientes do barulho de nosso próprio ronco. E, sem um Sr. Urias por perto, a discussão sobre quem está certo ou errado pode estragar um banquete, causar uma inimizade ou gerar estresse. No trânsito, por exemplo, um único Sr. Urias valeria por uma centena de fiscais.
Uma amiga, certa vez, disse que eu parecia o Bob.
— Meu cabelo nunca chegará a rastafári — respondi.
— Estou falando do Bobby — esclareceu Marlinda. — O Bobby, do Fantástico Mundo de Bobby.
O leitor, caso desconheça o personagem que eu então também desconhecia, faça o favor de assistir à abertura do desenho animado logo abaixo e ver como o pequeno Bobby passa da realidade ao delírio em centésimos de segundo.
Pois na falta de um Sr. Urias por perto, resolvi assumir meu lado Bobby. Quando troco os cômodos de minha casa pelas ruas da cidade, e presencio flagrantes desrespeitos ao Código Nacional de Trânsito ou simplesmente às boas maneiras, em vez de me irritar e praguejar contra o infrator que faz da via pública uma via privada, opto por cantarolar uma antiga cantiga infantil: "Se essa rua, se essa rua fosse minha..."
Um motorista que estaciona em fila dupla, ou que dobra à direita sem ligar a seta, ou que decide virar à esquerda mesmo estando na extrema direita da pista, ou que para sobre a faixa de pedestres, ou que liga o pisca-pisca como se fosse um salvo-conduto para estacionar onde é proibido...
Se essa rua, se essa rua fosse minha...
Um pedestre que aperta o botão do semáforo mas que não tem paciência de esperar o sinal ficar verde e atravessa antes do tempo para, quando o semáforo abrir, formar uma fila de carros que esperam um sinal vermelho sem ter mais ninguém para atravessar a faixa; ou um grupo, ou mesmo um casal, que caminha ocupando toda a extensão da calçada, impedindo a passagem dos pedestres que vêm em sentido contrário...
Se essa rua, se essa rua fosse minha...
E então, por milagre do delírio, todas aquelas pessoas que eu via como mal-educadas se tornam, de repente, pequenas crianças brincando de ciranda no playground das ruas.
Porque eu não sou o sábio Sr. Urias. Porque talvez eu tenha apenas acabado de acordar após passar a noite roncando. Porque talvez eu esteja errado, pensando que estou certo. Por tudo isso — e por um punhado de outras coisas das quais eu possivelmente nem desconfio — é que é melhor eu ficar manso como um carneirinho e bancar o Bobby.
Ontem conheci o Sr. Urias. Fui convidado para almoçar em sua casa por seu enteado, um amigo meu que me havia prometido um carneiro. Eu não gosto de carne de carneiro, talvez por haver presenciado o sacrifício de um, quando eu ainda era criança. Como pode ser gostosa a carne de um animal que a gente vê pendurado de cabeça para baixo, que é golpeado na nuca, que é atravessado por um facão e do qual se tira o couro inteiro enquanto, no chão, uma bacia recolhe seu sangue? Mas insisti tanto com meu amigo Ricardo para que ele cumprisse sua promessa de oferecer um carneiro àqueles que lhe haviam auxiliado com o projeto para o doutorado que cheguei à casa de Seu Urias e Dona Nilmar disposto a adorar carne de carneiro, pelo menos por um dia.
O Sr. Urias me surpreendeu primeiramente pelo passo lento. Hoje é tudo tão fácil e veloz que admiro quando vejo alguém andando devagar, como se não tivesse nada urgente para fazer. Só conheci uma outra pessoa que andasse tão lentamente quanto Seu Urias: Manu, um colega dos tempos de faculdade que se tornou um grande amigo e meu mais abundante parceiro musical. Manu andava — e ainda anda — tão devagar, mas tão devagar, que é capaz de vez coisas que eu, em minha pressa, não consigo: poesia, por exemplo. Você me fez flutuar, quando lhe beijei. Me senti criança, brinquei de ciranda, de amor. Coisas assim, Manu sente e escreve em pensamento enquanto anda devagar como o Sr. Urias.
Sentamos à sombra do caramanchão e, enquanto comíamos um pobre e gostoso carneiro que havia sido sacrificado naquela semana, a conversa entrou em assuntos polêmicos. Com dez pessoas ao redor de uma mesa — algumas bebendo álcool —, um tema polêmico pode ser o estopim de uma explosão e transformar um encontro de confraternização numa terceira guerra mundial. Foi quando o Sr. Urias, que me disseram ser advogado e grande apreciador de História, resolveu entrar na conversa. Preparei meu espírito para o pior: pessoas que gostam de história — mesmo com agá minúsculo, como este que vos escreve — costumam ser chatas. Mas o Sr. Urias me surpreendeu mais uma vez. Disse que o certo e o errado são relativos para nós, humanos, e só podem ser bem avaliados se comparados com o absoluto, que é a Natureza. Se algo não está de acordo com a Natureza, está absolutamente errado. Mas como tudo vem da Natureza, se algo existe é porque pode estar relativamente certo. E arrematou afirmando, acerca da polêmica, que tal comportamento não era correto, mas era aceitável.
O leitor — curioso — vai querer saber qual o assunto de nossa conversa. Não vou dizer. Se o leitor souber qual era o tal comportamento em questão, vai pensar que o Sr. Urias falou besteira. Vai fazer como o Rei Davi, que copulou com a mulher de seu soldado Urias — o bíblico — e, não satisfeito com o simples adultério, ordenou à sua tropa que debandasse, deixando Urias sozinho na linha de batalha, sacrificando o inocente marido de sua amante ao exército adversário.
A sabedoria do Sr. Urias arrefeceu a polêmica, mas logo alguém trouxe novo assunto provocador, dessa vez sobre uma política do governo. Mais uma vez, respirei fundo: aquilo não ia acabar bem. Mas o Sr. Urias, lembrando Aristóteles, comentou que se deve tratar desigualmente os desiguais, o que também encerrou o assunto rapidamente, me fazendo reconhecer que a sabedoria do Sr. Urias não era fortuita, mas podia se repetir vezes sem conta.
Quis saber mais sobre Seu Urias, e ele revelou que só fez Direito já na maturidade, que sua área de estudo na juventude era a Geologia. E me pareceu muito correto que, antes de se conhecer a Justiça, é conveniente conhecer o chão onde se pisa e em que já pisaram alguns bilhões de seres humanos.
Hoje, na fila do supermercado, folheei uma revista para me distrair da distância até o caixa. E fiquei me perguntando o que o Sr. Urias diria sobre uma polêmica que tomou conta da mídia durante a semana passada. Porque só mesmo investido da sabedoria do Sr. Urias para resolver polêmicas com quem posa de salvador da mátria, mesmo começando frases com pronome oblíquo átono.
O problema com a gente — enquanto humanidade — é que, quando a gente ronca, sempre está dormindo. E, vez por outra, estamos sujeitos a acordar mal-humorados, incomodados com um barulho externo, inconscientes do barulho de nosso próprio ronco. E, sem um Sr. Urias por perto, a discussão sobre quem está certo ou errado pode estragar um banquete, causar uma inimizade ou gerar estresse. No trânsito, por exemplo, um único Sr. Urias valeria por uma centena de fiscais.
Uma amiga, certa vez, disse que eu parecia o Bob.
— Meu cabelo nunca chegará a rastafári — respondi.
— Estou falando do Bobby — esclareceu Marlinda. — O Bobby, do Fantástico Mundo de Bobby.
O leitor, caso desconheça o personagem que eu então também desconhecia, faça o favor de assistir à abertura do desenho animado logo abaixo e ver como o pequeno Bobby passa da realidade ao delírio em centésimos de segundo.
Pois na falta de um Sr. Urias por perto, resolvi assumir meu lado Bobby. Quando troco os cômodos de minha casa pelas ruas da cidade, e presencio flagrantes desrespeitos ao Código Nacional de Trânsito ou simplesmente às boas maneiras, em vez de me irritar e praguejar contra o infrator que faz da via pública uma via privada, opto por cantarolar uma antiga cantiga infantil: "Se essa rua, se essa rua fosse minha..."
Um motorista que estaciona em fila dupla, ou que dobra à direita sem ligar a seta, ou que decide virar à esquerda mesmo estando na extrema direita da pista, ou que para sobre a faixa de pedestres, ou que liga o pisca-pisca como se fosse um salvo-conduto para estacionar onde é proibido...
Se essa rua, se essa rua fosse minha...
Um pedestre que aperta o botão do semáforo mas que não tem paciência de esperar o sinal ficar verde e atravessa antes do tempo para, quando o semáforo abrir, formar uma fila de carros que esperam um sinal vermelho sem ter mais ninguém para atravessar a faixa; ou um grupo, ou mesmo um casal, que caminha ocupando toda a extensão da calçada, impedindo a passagem dos pedestres que vêm em sentido contrário...
Se essa rua, se essa rua fosse minha...
E então, por milagre do delírio, todas aquelas pessoas que eu via como mal-educadas se tornam, de repente, pequenas crianças brincando de ciranda no playground das ruas.
Porque eu não sou o sábio Sr. Urias. Porque talvez eu tenha apenas acabado de acordar após passar a noite roncando. Porque talvez eu esteja errado, pensando que estou certo. Por tudo isso — e por um punhado de outras coisas das quais eu possivelmente nem desconfio — é que é melhor eu ficar manso como um carneirinho e bancar o Bobby.
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Bjos!