A FORÇA >> Fernanda Pinho

"Uma pessoa que já sofreu é perigosa, porque ela sabe que pode se recuperar".
[do filme Perdas e Danos]


Olhando de fora, a gente sempre acha que não irá sobreviver a uma situação da qual tem muito medo. E é exatamente por isso que a gente tem medo. Mas quando acontece, não resta outra opção senão sobreviver, o que, no fim das contas, nem é tão ruim. Quer dizer, no início é ruim porque você nem está muito interessado em sobrevivência ou qualquer coisa que o valha. Mas a vida insiste. Me lembro, como quem se lembra de um sonho confuso, do momento em que a vida me confrontou com a situação que eu tanto temia. A hora da perda é muito estranha. Parece que você está pisando sobre nada e que o céu também está interessado em cair na sua cabeça. Você cambaleia e se apoia nas coisas e nas pessoas, mas é como se tudo e todos fossem fantasmas transponíveis. E então eu consegui chegar ao espelho e ver estampado no meu rosto um F bem grande. A letra do meu nome e, que ironia, de "fracasso" também. Depois foram quatro ou cinco dias (não estava boa para contar, nessa fase) andando como um zumbi atrás das pessoas da minha casa, com medo de ficar só, porque, de repente, fui acometida pelo pânico de todo mundo ser um covarde que pudesse me deixar sozinha, sem mais nem menos. Mas ninguém aqui me deixou e, embora eu mereça às vezes, tenho a certeza de que não vão me deixar nunca. Eu não sei ao certo, mas acho que foi daí que começou a nascer a força. Eu a sentia chegar devagar, quando eu tinha uns rompantes de vontade de comer, de escrever, de me arrumar e outras coisas que me são tão naturais mas que, naqueles dias, não eram. Eu até supus que ela continuaria a vir em doses homeopáticas e que, algum dia, eu voltaria a ser algo parecido com o que eu era antes de tudo. Mas não está na minha natureza física nem psicológica saber esperar. Eu não poderia esperar "algum dia" sem saber que dia seria esse. Então meu corpo, meus membros, meus órgãos, minhas células, meu consciente, meu inconsciente, minha memória, minha alma, meu coração, enfim, essa coisa toda que a gente chama de "eu" sofreu uma explosão. Uma explosão de força, sabe como? Um dia eu acordei e parecia que eu era o Popeye e tinha comido todo o espinafre do mundo. Eu, que nunca consegui abrir nem garrafa de refrigerante, me peguei abrindo vidro de azeitona e comendo tudo — azeitona ou não. Comendo, sorrindo, escrevendo, saindo, conhecendo gente, organizando festa e viagem, fazendo mil e um planos. Trabalhando loucamente, como se meu trabalho fosse a coisa mais importante do mundo. E, de certa forma, é mesmo, porque meu trabalho sou eu. Minhas amigas sou eu. Meus amigos sou eu. Meus pais sou eu. Meus textos sou eu. Meus projetos sou eu. A força reduziu certos sentimentos a pó e me trouxe essa descoberta de que não havia sido deixada nenhuma lacuna na minha vida. Eu perdi alguma coisa? Perdi, talvez. Mas diz um hit brega dos anos 90 que "nem tudo o que se perde tem valor", e é bem por aí mesmo. Alguém pode pensar que isso é conversa de mulher recalcada. Tudo bem. Fiquem à vontade com seus pensamentos. O que os outros pensam de mim não sou eu e vocês já devem ter notado pela toada do texto que o que não sou eu não me interessa mais. Nada daquilo me interessa mais. Tanto não me interessa mais que agora eu consigo escrever sobre isso. Só agora. Embora tenha tentado durante todo esse mês que passou — sendo bem incapaz em todas as tentativas. Mas agora veio tudo. É sempre assim: depois da força, vem a lucidez. Vi todas as palavras escorrendo pelos meus dedos e pelas minhas unhas. Minhas unhas pintadas de vermelho, coisa que eu não fazia há tempos, desde que estava possuída por aquela personalidade boba e subserviente. Mas agora sou eu de novo. Eu forte. E com esmalte vermelho nas unhas dos dedos pelos quais escorrrem as palavras que, de uma vez por todas, colocam um fim nessa história de início previsível, meio angustiante e fim libertador. Uma última pá de cal.


Comentários

Carla Dias disse…
Catarse...
A vida nos coloca sempre em situações que nos forçam a provocar a nossa própria definição. Bom saber que você é dos que se levantam dos tombos.
Concordo com a Carla: catarse total. Eu gosto muito da frase citada, do filme 'Perdas e Danos' (muito denso (a frase e o filme)) e acho que é por aí mesmo. Também já passei por esse 'processo' descrito e parece um milagre 'aquele dia' em que a gente, após uma simbólica morte, desperta e recomeça. Beijo pra vc.
Loreyne disse…
Muito bom ver vc assim outra vez!
Jujú disse…
Você não pode me ver agora, mas eu estou de pé lhe aplaudindo!

Eu nunca duvidei que esse dia chegaria, e que vc se reergueria. Eu entendo de dor, e entendo de você, como entendo de mim, então sei que aconteceria...

"O que não nos mata nos fortalece"....não é isso que dizem? E assim é!

Um brinde à você!
Unknown disse…
o fim libertador é a melhor parte de tudo, sempre nos sentimos mais resistentes depois!

beijão
Fernanda Coelho disse…
Fernanda, Xará. Li a sua crônica como se fosse minha, como se fossem problemas, enfrentamentos e forças gêmeas. Passei por isso aí muitíssimo recentemente e a força me vem aos rompantes, abrindo espaço na vida e tirando de mim uma pessoa que eu praticamente desconheço. Algumas pessoas têm estranhado, mas não ligo a mínima. Estou aqui também, com minhas unhas igualmente vermelhas e dedos a postos para te parabenizar pela vida, pela força e pelo texto.
Um beijo grande.
Força aí.

Fernanda Coelho
Fernanda Arruda disse…
Oi Fer,
Admiro tanto essa força. Parece que quando aceitamos a perda, quando aceitamos virar a página, aí a vida nos presenteia com o melhor de nós. Enquanto choramos sobre o leite derramado, a vida fica ali, quietinha, a espreita de tudo, esperando nossa aceitação. Belíssimo processo de autoconhecimento este seu. Eu vivi algo muito semelhante, mas levei alguns anos para o despertar, que é sempre libertador. Também estou aqui de unhas vermelhas, aplaudindo você através dessas minhas palavras.

Um beijo.
Marilza disse…
Bravo! Um dia eu chego lá....na fase do renascimento. Falta pouco....sei que falta....
Unknown disse…
Carla e Débora: vocês me deram a palavra que faltou no meu texto mas que o resume tudo. Foi um processo de catarse mesmo.

Reyne, Jujú e Lah: podem estar certas que vocês fazem parte d'A Força!

Fernandas: nossa, vocês duas me emocionaram. Quase chorei, sério. Mas temos uma conexão, né? De Fernandices vocês entendem...rs

Marilza: acho que os renascimentos são vários, né? Sei que a vida ainda me reservará muitos. Mas pra renascer, estou sempre dispostas.

Muito obrigada, gente. Nunca postei um texto aqui que tivesse tanto significado pra mim. De verdade.

Beijos!!!
Anônimo disse…
Adorei o texto e acho q a quantidade de pessoas que gostaram é grande exatamente pq todos se enchergam no texto, pois na vida agente acaba sofrendo, uma hora ou outra.
E acho q para as mulheres a cor do esmalte diz tudo, reflete nosso estado de espírito. Agente sabe o que cada corzinha representa.
Parabéns!
"Perdas e danos" é um dos meus filmes preferidos, Fernanda. Por essa citação de abertura da sua crônica, que eu gosto de traduzir assim: "Pessoas sofridas são perigosas: elas sabem que podem sobreviver". E também pelo final do filme, que é simples e lindo e tranquilo: pura luz. Espero que a força recém-adquirida lhe leve até a luz desses finais.
albir disse…
Fernanda,
A arte é mesmo mágica: seus textos não se ressentiram do seu desamparo. "The show must go on!" Bem-vinda! Beijo.
Sabe, lendo esse texto, melhor dizendo, lendo O TEXTO, me veio aquele sentimento que há tempos eu não tinha: parece que eu me senti em mim e "o que não sou não me interessa mais", como você bem disse. Será que você dividiu todo o espinafre do mundo comigo, marinheira? Essa cartase é 110% Fernanda Pinho e isso me deixa muito orgulhosa e satisfeita, porque mulheres como você merecem estar exatamente aí: no topo. Te amo minha amiga.
Thayná disse…
Que lindo, posso considerar como um dos melhores que ja li aqui.
É aquele texto que você ler e tem vontade de viver sabe?!

Parabéns! Continue escrevendo MUITO.

beijs
Unknown disse…
Anônimo: tem razão. Só uma mulher sabe o poder que o esmalte tem :)

Eduardo: Também é um dos meus filmes preferidos. A arte ensina e a gente tenta aprender, né?

Albir: Obrigada, Albir! "Enquanto houver sol ainda haverá".

Thatha: Estou desconfiada de que foi você quem mandou desgarregar o estoque de espinafre aqui em casa!

Thayná: Fico muito feliz com seu comentário. Esse texto foi um dos mais importantes pra mim aqui no blog e é bom saber que tenha sido importante pra vc também!

Beijos!!!
Kika disse…
Fernanda, que texto lindo, forte, denso. Você realmente soube descrever aquilo que a gente nem sabe bem o que é. Algo como morte e ressurreição. Seja bem vinda de volta à vida.
:) beijos
Anônimo disse…
O que não nos mata nos fortalece? Não. O que não nos mata por fora, nos mata por dentro. Desde a infancia sofro com familia, amigos, namoradas... pessoas que ganham a confiança e depois ferram comigo. Hoje não me importo com muita coisa. Minha familia eu desconsidero, meus amigos, não vejo eles como pessoas queridas e sim, como pessoas uteis. E namoradas... bom. Até tento, mas não tenho mais nenhum sentimento. Conveniencia e olhe lá.

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