DEUS MORA NOS DETALHES... [Debora Bottcher]
Essa é uma das minhas melhores memórias da infância: eu ficava maravilhada com essas cenas de fim de semana, feriados e datas especiais (havia muitas delas, inclusive fora do calendário oficial).
A porta dava para a margem de um rio onde os homens se sentavam para pescar e as crianças normais (meus primos) brincavam numa gritaria (espantando os peixes gerando natural indignação entre os 'pescadores' de plantão) que a mim parecia muito distante - acho que cresci antes da hora, minha inocência voltada para outras descobertas.
Ali, certamente, eu mais atrapalhava que ajudava, querendo sovar o pão, enrolar (e roubar) o brigadeiro, bater o bolo, furar o pernil com um garfo que era maior que eu - tudo ajoelhada no imenso banco de madeira ou pendurada sobre a mesa. Mas ninguém reclamava: eu era o xodó das minhas tias e avó, a única neta loura de olhos azuis (herança do meu pai) - o que, naquela época, encantava uma família onde o castanho e o negro eram soberanos (hoje, é minha sobrinha de quinze anos que ocupa esse lugar, desafiando a morenice do meu irmão e cunhada).
Mas foi assim, nesse tumultuado meio de cheiros e afazeres, que desenvolvi a arte de cozinhar - e bem, modéstia à parte.
Já adulta, descobri que esse é um ofício que, mais do que semear sabores, induz ao agregar: é à mesa onde as pessoas mais se deliciam. Beliscando aqui e ali, o tempo passa, a conversa nunca se desencadeia, somos mais unidos - uma curiosa confraria, o alimento um tesouro.
E durante a vida toda, a qualquer hora que chegam em minha casa, eu ponho a mesa e não há exceções: todo mundo se acomoda em volta dela e se deixa ficar - não importa se distribuo pães e frios ou um manjar dos deuses.
E sempre me surpreendo com a degustação dos que aqui se achegam e dou graças por ter crescido entre mulheres tão encantadoras, que plantaram em mim a semente de, mais do que satisfazer ao paladar, espalhar, entre os que quero bem, a união e o prazer de saciar o corpo e, especialmente, a alma.
Não raro, a gente se pergunta por que veio ao mundo. Se prestar atenção aos detalhes, não escapa de descobrir...
Comentários
Gostoso lembrar a infância.
Excelente final de semana!
bjs
Lucimara Souza
www.textos-e-reflexoes.blogspot.com
Obrigada Lucimara, Sam, pelo carinho da leitura.
Beijo enorme em todos.
ai que saudades me deu das inúmeras vezes em que me sentei à mesa com vocês... madrugadas e madrugadas a fora e vocês aturando as minhas "bobagens"...
beijos e saudades