DESAPEGOS >> Carla Dias >>

Desapegar-se é um processo que envolve dolências, ao menos para mim. Se durante muito tempo cultivei desejos, reverberei afeto por algum projeto ou pessoa, certamente assumir que é hora de deixar passar não é fácil. Entro no dial da catarse, do exorcismo que sempre é a contragosto.

Ao mesmo tempo, é esse meu desjeito para o desapego que vem garantindo que muitos dos meus relacionamentos, em todas as suas vertentes, não desabem por falta de paciência, que é a ciência da descoberta. Porque sei que não sou das pessoas mais fáceis de lidar, que não sei dizer o que escrevo. E nem todos aceitam a importância dos bilhetes.

Desapegar-se da tarde de outubro de 1994, ou do palco mais feliz no qual já estive. Das orlas banhadas pelo mar das dezoito horas e tantos minutos. Da tempestade à mercê de conversa que não temia a fúria da natureza. Dos brincos de quando eu os arquitetava, do cartão da biblioteca precisando de segunda via. Do olhar marejado do moço, azul de um jeito que nem te conto. De momentos colecionados em fotografias.

Desapegar-se não é expulsar da lembrança, mas diminuir o poder dessa lembrança sobre quem somos no agora, colocando-a no lugar que lhe cabe: o passado. Tampouco é se desviar das importâncias que colecionamos vivendo as nossas rotinas.

Desapegar é permitir que as pessoas partam da gente sem que nos sintamos desistindo delas ou de nós mesmos. É abrir mão de planos nos quais despendemos tanto tempo e energia, mas aos quais jamais pertenceu a realização. E não domesticar as desculpas a ponto de torná-las calços de apegos que só fazem ocupar espaço na alma da gente. Espaços que deveriam pertencer ao que chega, ao que nos transforma.

Desapegar-se é como despir-se de alguns sonhos, desentranhar labirintos. Esvaziar-se de expectativas vãs para abrir as janelas de si e deixar que entre: a vida em movimento.

Imagem: Carmen Novo > http://pagesperso-orange.fr/carmennovo

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Comentários

Carla, já faz algum tempo que estou tentando dizer isso para mim mesmo, mas ainda não havia conseguido as palavras. Brigadim por ter me dito isso agora de maneira tão perfeita. ;)
Carla Dias disse…
Ah, Eduardo, precisa agradecer não... Quem agradece sou eu, a companhia através da leitura dos meus desapegos.
Anônimo disse…
Falando assim, pela razão td parece realmente tão fácil..mas como usualmente sou movida pela emoção e sou uma colecionadora em absoluto, temo q será dificil...mesmo desejando
Ivan Rose disse…
Olá Carla...
Nem sempre paramos para refletir sobre isso. Em auto-análise posso considerar-me um "viciado" então... A força é grande na tentativa de livrar-me dessas amarras, sentir o coração menos apertado quando algo ou alguém se vai... Alguns apegos me fazem muito mal, mas como é difícil abrir a consciência...
Carla Dias disse…
Anônimo... Não é razão, não, nem de longe, tampouco de perto. São apenas constatações e elas correm léguas da prática, porque aceitar que o desapego é necessário é uma coisa, mas fazê-lo acontecer é outra, bem diferente. Escrevi esse texto para que pudesse encarar essa necessidade, mas não significa que serei capaz de me transformar de tal forma. E o desapego é emocional, sempre.

Oi, Ivan... Ah, meu amigo, o desapego é difícil mesmo. Sei que escrever , ler ou falar sobre ele pode nos levar a pensá-lo com mais clareza. Mas colocá-lo em prática é que é complicado. Só que impossível não é. Na verdade, o desapego é necessário, afinal, precisamos dar espaço aos que chegam, projetos de vida e pessoas. Espero que você se entenda com os seus desapegos e que isso o faça ainda mais feliz e lhe dê aquela leveza que tanto buscamos.
albir disse…
Carla,
sempre bom refletir em sua companhia. Parabéns pelo texto.
Carla Dias disse…
Albir... Obrigada pela companhia.
Anônimo disse…
Recebi sua crônica através de uma pessoa que para mim é muito importante e estremeço ao pensar que isso é um sinal de que devo me desapegar mas de qualquer maneira apreciei muito o que li e quem sabe o desapego seja menos doloroso já que tive que refletir sobre essa possibidade.

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