A PREGUIÇA DO BAMBU [Sandra Paes]
Mas agora é outro momento. Rever os jardins japoneses, respirar ar puro, lembrar como é estar vivo de fato. Sim, porque os últimos acontecimentos no ano passado, por vezes, me tiraram o senso. Essa coisa boa que é simplesmente sentir, respirar e dar graças por poder fazê-lo e contemplar tudo à nossa volta.

De repente, uma parada súbita. Um certo grupo em torno de uma jovem, vestida pra festa, em seu delicado traje azul violeta e sua juventude pictórica refletida num rosto impressionista debaixo do chapéu que compunha seu traje de debutante. Paramos todos diante dos transeuntes.
A menina do chapéu lilás rouba nossa atenção por um momento e me transporto ao tempo dos pintores impressionistas lá em Paris, num dado picnic, talvez a sentir o mesmo que senti nesse instante. Quem sabe?
Continuamos a caminhar e eu, quase flutuando, me recordo do tempo em que nadava nos céus. Sim, porque céu azul como esse é para se nadar. Braçadas lentas, meneio de cabeça leve a contemplar lá do alto a paisagem difusa lá debaixo. Comento com minha amiga sobre essa visão quase desejo e ela sorri por assimilar o pensamento.

No passeio de um jardim japonês tudo é válido e concreto. De repente, meio ao silêncio misto com sons de vozes ao redor, ouço um espreguiçar, desses que a gente experimenta quando deita na rede, à tarde, quase anoitecendo, depois de um almoço feito em fogão de lenha. O corpo pende lentamente e a rede lança um som de preguiça, dessas cheias de poesia e encanto: nhec, nham, nehc, nham...
Olho lentamente à busca do ser lânguido que ecoa novamente: — Nhec, nham, nehc, nahmmm... Quem será?
Ergo a cabeça em busca de um pássaro ou algo que seja. Quero saber quem, a essa hora da tarde, me deita tal preguiça. E ei-lo: magnifico, junto a seus companheiros, numa dança de rede de nordeste, a balançar. Um dos altivos bambus num grupo de uns seis ou sete, naquela touceira, a mostrar que também eles parecem sentir preguiça. Sorrio em sinal de cumplicidade e seguimos a caminhar.
Lembro-me das lições de ikebana, aprendidas há anos na Igreja da Rua Itabaiana. Aprender com as plantas, todas elas, a ler o vento, seus sinais e códigos, apreender com os galhos e seus movimentos o que a natureza fala naquele instante, e saber com delicadeza a nos comportar como eles em seus reinos magníficos. Os bambus nos revelam a resiliência e a flexibilidade. Em sua altivez, jamais perdem a humildade de saberem se curvar e mesmo diante de tantos desafios podem nos sussurrar, mesmo sem conhecerem Macunaíma: “— Ai, que preguiça!”

Mais uns passos e chegamos diante da exuberância dos bonzais. Não resisto, e abraço com gosto uma das arvorezinhas. Ela me chamou, eu juro! E quando vou ver quem é... surpresa: uma jabuticabeira brasileira! Jamais pensei que pudesse haver uma jabuticabeira em forma de bonzai. E não deu pra evitar os tempos de menina a subir na árvore cheia de frutos e sentir a vida sem sabê-la.
E parece que é assim mesmo. Viver a vida exclui o saber. No momento em que se vive, apenas se registra, em todos os sentidos, o almagama de quem passa e experimenta. O resto são códigos dos homens em nome de se fazer históricos, cheios de selos e etiquetas.
Eu fico com a preguiça do bambú que ainda ecoa em mim seu sussurro sábio de altivez, resiliência e humildade: — Nhec, cnhec, nhammmmm...
Imagens: Jardim Japonês, Sushicam.com; Paz Interior, Artenara; Caminho de Bambu, Getty Images
Comentários
Lindo texto, Sandra! Obrigada - por tudo. Beijo enorme.
Essa tua linda cronica exala o perfume bom daquelas horas de nossa infancia em que a nossa felicidade ainda nao se sabia. Ninguem como voce para fotografar a cena, e com arte adicionar os sons, as palavras, o sentimento.
Como ultimamente e' mais isso que vale a pena do que tudo...mas por outro lado, como seria possivel sem voce e sua sapiencia, para tao bem nos dizer o que sentimos e talvez nem sentimos, o momento e' so'seu, mas ohhh que vontade de sentir tambem!!
Sou sua fan SEMPRE!
Cristina Alegre