A MADRUGADA >> Kika Coutinho

Quando eu era jovem — ups, mais jovem — frequentei algumas baladas na noite de São Paulo e achava que aquilo era muito emocionante.

Casei-me e, tendo minha filha, pensei: “Acabaram-se as noitadas, as emoções da madrugada ficaram no passado”. Ah, que tolice. Eu não sabia que as emoções das madrugadas estavam apenas começando.

Ter um bebê é como ir — obrigatoriamente — a uma rave, toda noite.

Imagine que você pode não estar afim de festa, pode estar com preguiça, cansado, sonolento, mas é obrigado a ir à balada. Pior, a balada vem até você. Toda noite uma rave, é assim que me sinto com a minha pequena notívaga.

Ao invés de rímel, pijama. Ao invés de salto alto, pantufas. O ritual noturno repete-se, com algumas diferenças da balada. Não pago nada para entrar nessa festa, ou melhor, não pago diretamente, mas, mensalmente, essa rave custa-me uma pequena fortuna.

Também não recebo a festa sozinha, não; meu marido compartilha comigo das noites intermináveis desse clube e, juntos, descobrimos os dissabores da madrugada.

Normalmente iniciamos achando que tudo vai se sair bem. É só mais uma horinha e ela cansa, pensamos. Mas ela não cansa. E nós, sim, cansamos a beça. Quando passam-se duas horinhas desse primeiro momento, já precisamos revezar. É como se um achasse um sofazinho pra sentar, enquanto o outro é empurrado pra pista. Nossa, quanta fumaça! — eu diria na balada. Em casa, repito baixo: “Nossa, quanto xixi!”, e lá se vai mais uma fralda. Meu parceiro da noite faz uma pergunta inocente: “É normal vazar xixi?”. Eu acho que é, mas, no meio da noite, tudo o que é normal pode não ser. A madrugada tem outras cores, um cigarro pode não ser só um cigarro e um guaraná pode ter um "boa noite, cinderela". Ai, eu queria tanto tomar um "boa noite, cinderela", penso, antes de apavorar-me: Será que xixi demais pode ser algum problema? Ih, e tem cocô! Puxa, que cocô mole, acho que ela está com diarréia. Tiro meu cúmplice de sua poltrona: “Amor, põe a mão aqui, veja se ela está com febre”.

Hum, tá quente, ele responde sem pensarmos que está quase 40 graus em São Paulo. Achamos um termômetro. Tentamos. Trinta e seis é febre? Acho que não. Esse termômetro tá funcionando mesmo? Deve estar.

Calma, calma, calma, repito como um mantra, enquanto a música eletrônica me ensurdece os ouvidos. Como chora alto a minha menina... As horas passam, ofereço o peito e temos uma trégua. Estamos no bar e alguém nos deu água. É só meia horinha, mas é um alívio sair da muvuca, não? Quando o peito esvazia, de novo somos empurrados para a pista lotada. Já não consigo respirar, está muito alto esse barulho: “Putz-putz-putz-putz-putz-uééééééééé”, é uma sirene? Ela está engasgada? Estou enlouquecendo. Será que tinha mesmo um "boa noite, cinderela" no meu guaraná? Tomei guarná? Uéééééé, uééééé. O bar fechou e decido fazer uma mamadeirinha pra ela. Tento sair da escuridão da balada, acendo algumas luzes, o choro fica distante, parece que fui tomar um ar. Na cozinha, sinto-me do lado de fora da boate, respirando por alguns instantes. Logo, chega meu companheiro, assustado: “Olha o que saiu do nariz dela!” e me mostra um tequinho verde, caca pura. “É uma caca de nariz, amor”, respondo com a sanidade de quem saiu da rave. “É normal?”, ele pergunta, ainda ofegante. “Do meu nariz sai caca, do seu não?”. Ainda me resta algum humor. Ele sorri, eu respiro. Se estamos conseguindo rir, ainda há esperança. Deve ser porque o sol começa a despontar lá fora e nossa pequena rave, logo, nos dará uma trégua. Ela dorme e eu penso em pedir o carro. "Vamos?", convido olhando pra ele. "Vamos", ele responde, me puxando pela mão.

É dia em São Paulo...

Comentários

Tati Martins disse…
Ótima crônica. Adorei as metáforas. Pena que sua Rave só está começando. Deixa esse neném crescer e começar a andar com as próprias pernas. Depois vc vai ver quando começar a sair com os amiguinhos e a namorar... Acabaram-se as noites de sono tranquilo para sempre (faz quase 16 anos que nào sei o que é dormir uma noite inteira sem nada diferente).
Por favor, Kika, tome como um elogio: cada vez mais tenho a impressão de que você é uma reencarnação do Rubem Braga. :) Mais uma bela crônica clássica!
Cristiane disse…
Ana, eu me divirto com suas crônicas. Ás vezes fico um pouco apavorada em pensar na idéia de ter filhos, nas como tenho dois sobrinhos fofos e os acompanho desde a barriga, estes fatos não são tão novidades para mim, mas a idéia de ter uma 'rave' noturna diariamente é algo a se pensar...
Tentei comentar em duas outras crônicas aqui, mas os comentários não saiam, não sei porque, vamos ver se hoje dá.
beijos e força!
Carla S.M. disse…
Ai, não tenho muitas saudades dessas raves , não, Ana! Mas continue de bom humor, porque depois melhora um pouco! rsrsrs
bjs

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