VOCÊ TEM FOME DE QUÊ? >> Kika Coutinho
Em uma das tantas tentativas de dividir o mundo em dois, diz-se que existem as pessoas que vivem para comer e as que comem para viver. Foi lá pelos 15 anos que eu notei que faria sempre parte do primeiro grupo. Notei que isso poderia ser um problema quando namorava o namorico dos adolescentes e meu doce príncipe perguntava, naqueles momentos de silêncio compartilhado: “No que você está pensando?”
Pronto, ali iniciava-se meu drama. Ele certamente esperava que eu dissesse que estava pensando na gente, no nosso futuro, nos lindos olhos dele ou qualquer coisa assim, mas, sempre que ele perguntava no que eu estava pensando, eu estava pensando em comida. E ficava ali, meio sem graça, respondendo que não estava pensando em nada, só pra não dizer a verdade. Eu fazia um charme e dizia: “Em nada não...”. Ele nunca aceitava. Vai ver imaginava que eu estava pensando em outro, o que seria muito pior. Seria? Seria pior do que dizer a verdade. Às vezes eu ensaiava a honestidade: “Ai, amor, estou pensando em um bife acebolado, bem tostadinho, hummmm”. Mas sempre temi que ele me achasse uma draga. Claro. E segui disfarçando a minha fome.
Mais tarde, já macaca velha, ainda tinha que fingir. Nos jantares românticos, os namorados sempre sugeriam dividir a sobremesa e eu, envergonhada, aceitava. Depois ficava lá, disfarçadamente raspando o pote, tentando controlar o incontrolável até que puxava para mim a cumbuca e tentava resgatar aquele último fio da calda de chocolate. Perdia a noção da gentileza e do romantismo, acho até que cheguei a afastar alguns pretendentes por essa volúpia desmedida.
Quando, alguns anos atrás, conheci um rapaz que sugeriu duas sobremesas, ao invés daquela maldita ideia de duas colheres e um potinho no meio, sorri satisfeita. Devorei inúmeros sorvetes, bolos, pudins e, enquanto ele assistia a tudo sem relar no meu doce, eu soube que aquele era o homem da minha vida, e nos casamos.
Talvez por isso, talvez por ter pautado tantas coisas importantes da minha vida pelo prazer da refeição, eu tenha ficado tão chocada com a declaração da Fernanda Montenegro no Fantástico, algumas semanas atrás. A Patrícia Poeta pergunta, docemente, se ela mima muito os netos. E ela, fina e elegante como sempre, responde apenas que faz alguns agrados. "Que agrados?", pergunto eu, do lado de cá da tela. E a atriz responde: “Às vezes libero um arrozinho branco, um pão branco....”. Para tudo. Eu entrei em choque anafilático, acho. São os fins dos tempos, diria Opash. As crianças comem arroz e pão integral e, de certo, rúcula e chicória. Não que isso seja ruim, mas, por um instante, achei que ter como mimo especial da vovó arroz branco e pão francês, torna o mundo um lugar preto e branco, vazio e quase que inóspito. E um chocolatinho? Uma taça de sorvete? "Hã? Choco o quê?", ouço as crianças me responderem, lindas, saudáveis; magras, claro. Talvez eu esteja errada. Talvez eu deseje essa saúde e vitalidade para os meus filhos também, mas ter nascido numa época de Bis e bolinha de queijo sem cobranças me faz pensar que a vida desses pequenos que nascem no mundo do gastronomicamente correto pode ser menos doce e saborosa do que a nossa. Talvez seja também menos gordurosa, menos calórica e menos cheia de colesterol ruim. Talvez.
Mas, quem sabe por eu estar velha, cansada e grávida, insistindo no prazer do sabor, num jantar regado a pizza, coca-cola e uma sobremesa só para mim, brindo às coisas boas que posso deixar para os próximos paladares, esses pobres coelhos que estão vindo depois de nós...
Comentários
Até engordei uns quilinhos....rssss
beijo de brigadeiro!
klaudya
Vc me fez lembrar dos meus avós...
Meu avô tinha um mercadinho e sempre levava um saquinho daqueles de papel cheio de balas, chocolates Surpresa (lembra?), mentex...ai que saudade.
E o melhor: escondido da minha mãe, ele me deixava comer antes do almoço.
Ah...tb odeio dividir a sobremesa!!!
Beijos!
Bia Barino
(deu fome só de ler).
beijos!
O bom é ser feliz e, se comer faz bem, vamos comer (de tudo um pouquinho, é claro) do jiló ao milk shake. caracas, é bom demais. Beijos.