HISTÓRIAS E MATUTICES >> Albir José da Silva

Veio para o Rio de Janeiro aos sete anos porque precisava estudar. Na roça não havia escolas e o pai queria que ele “tivesse leitura”. Não entendia por que tinha que ler. Gostava era de brincar na terra, comer frutas e doces e ouvir histórias. Praticamente todos os adultos contavam histórias. Com elas conseguiam qualquer coisa do matutinho. Para que fizesse ou deixasse de fazer era só contar ou prometer uma história. Eram histórias para que comesse, dormisse, não chorasse. Não precisava que fossem inéditas, porque ele descobriu que cada pessoa contava de maneira diferente.

Na escola, assustou-se com tanta criança. Na roça os vizinhos e parentes moravam longe e não falavam tanto, nem tão alto. Achavam graça dele na hora do recreio porque comia bananas. Todos comiam biscoitos embrulhados na fábrica. A professora era muito bonita e usava roupas que ele não via na mãe ou nas mulheres que conhecia. Às vezes ela sorria e passava a mão na cabeça dele. Outras vezes ficava séria, com a testa franzida, brigona, e ele ficava com muito medo. Mas foi ali aprender a ler, e descobriu que as letras representavam sons; que, juntas, faziam sílabas; que, por sua vez, formavam palavras. Palavras que ele conhecia. Seu coração bateu acelerado como nas histórias que davam medo.

Tinha um brilho nos olhos quanto contou à mãe sobre a leitura. Só estranhou quando ela disse “muito bem, você está aprendendo a ler”. Como aprendendo? Ele já sabia! E começou a ler tudo: letreiros, manchetes e o que mais tivesse letras. Durante muito tempo, só leu. Nos intervalos é que comia, brincava, tomava banho e dormia. Sentia-se poderoso, o mundo não tinha mais mistérios, tudo estava escrito.

A escola não tinha biblioteca ou sala de leitura, nem se implorava aos alunos que lessem. Mas nas sextas-feiras, após o recreio, havia uma festa: caixas de madeira cheias de livros eram trazidas pelo servente. Cada aluno escolhia um livro, que a professora anotava, e que seria trocado na próxima sexta. Esse era outro momento em que o coração do matutinho batia muito. Escolhia seus livros sabendo que leria todos; que todos tinham histórias que contavam o mundo. E o mundo era dele. E de quem seria o mundo, se ele o descobrira?

Seguiu pela vida afora o matutinho, lendo histórias. Mas já não é o dono do mundo. A epifania agora acontece quando se descobre, nas histórias, pertencente ao mundo. E seu velho coração ainda dispara, já meio arrítmico, mas dispara.

Comentários

Albir, eu jurava que esse menino ia virar contador de histórias e escritor. :) Belo relato!
Ana Campanha disse…
Linda história! E ele descobriu um mundo novo!
George Bezerra disse…
O final foi bem diferenciado, ele simplismente continuou lendo, não se tornou escritor famoso ou algo parecido, achei bem interessante devido a falta de estrutura que a personagem possuía, e ao conseguir algo diferente do que o mesmo estava acostumado, sentiu-se ele o dono do mundo.Fiquei preso na história desde o início.

Ótimo conto.
"E de quem seria o mundo, se ele o descobrira?"

É aquela história... nosso mundo é aquilo que conhecemos.

Ótimo texto!
Abço,
Andrea
albir disse…
Edu,
Quem sabe,lendo seu comentário, ele se decida.
Abraço.

Tem razão, Ana Lúcia, cada história é um mundo novo.

É verdade, George Bezerra, afinal, ler já se basta, né?
Abraço.

Andrea Pio,
o bom é que podemos aumentar o nosso mundo. Infinitamente. Abraço.
Carla Dias disse…
Albir... De cara, lembrei da minha própria infância, mas de um jeito meio assim, porque não me vejo criança, não me alcanço em lembrança naquela época. Tiro apenas pelo resultado. A roça de onde meus avós, tias, tios e mãe vieram, e sobre a qual minha avó sempre discursava. O cenário de histórias sendo contadas, em noites quentes, nós sentados no quintal de casa. O próprio medo desembestado de quando tive de sair do meu canto e encarar a escola... Aquele monte de gente que não sabia de onde saíram. E a professora ensinando as letrinhas... Dando seta para as palavras. Adorei sua crônica... E obrigada por despertar boas lembranças em mim.

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