DOIS POEMAS PARA O FIM DE UM AMOR >> Leonardo Marona

"metáfora"

somos eu, a arena, o touro.
arena mínima, touro enorme.
eu danço na frente do touro,
tento apaixoná-lo por mim.
há doçura no olhar do touro,
doçura, loucura, catástrofe.
somos parecidos de certa forma.
mas eu sei disso, ele não sabe.
meu bailado parece irritá-lo,
faz o touro andar em círculos.
paro na frente dele, mas não
há como rezar, não há tempo
para se fechar os olhos, sou
levado a correr em círculos.
fora da arena os olhares frios,
sei que deixam o touro tenso
tanto quanto a mim, que tenho
menos pernas e a pouca sorte
de saber que, com frieza, eles
riem por dentro, se divertem.
além disso, o touro não sabe
como estou sozinho, na arena
que, maior que a arena, tem
o tamanho do mundo inteiro.
o touro não sabe o tamanho
do mundo inteiro, eu também
não sei, mas, por azar, posso
imaginar: vantagem do touro.
o touro não sabe da solidão,
mas, melhor que eu, ele sente
a brasa na pele todos os dias.
compreende melhor a saliva
que lhe escorre pelo focinho.
começa a corrida, somos dois
desesperados, atrás da trégua
que nos trará água, um cafuné.
não há água, cafuné: há palmas.
nem o touro nem eu entendemos
as palmas, o que nos aproxima.
sabemos apenas que as palmas
significam “nos tirem do tédio”.
estamos juntos, de certa forma,
e tenho vontade de abraçá-lo,
passar de leve a mão na cabeça
do touro, mas ele não tem mãos
para passar na minha, só sabe
que deve me espetar seu chifre,
só conhece o vermelho depois
do espanto, enquanto eu canso,
despisto o touro como posso,
peço calma, mas ele não fala
a minha língua e os olhares
frios indicam que nem mesmo
eu falo minha língua, e corro,
dou voltas, me desequilibro,
caio, levanto, corro ainda mais.
fugimos um do outro, o touro
e eu, mas as palmas, a frieza
são grandes inimigas, nos levam
a fazer o círculo tantas vezes,
o mesmo círculo, sem motivo.
em tempo, as palmas no fim
deixam-nos, a mim a ao touro,
como mestres com suas cartolas
e delas tiramos a paz evitada
já que nosso couro é a bússola
que justifica o tédio público
e nos faz seguir em círculos,
agora uma vez mais extasiados.
enquanto abandonam a arena,
somos dois corpos exaustos,
repletos de morte e passagem.
as cercas já não nos convidam
à fuga silenciosa dos presos
perigosos, somos apenas dois
iguais, com sede de aplauso,
e estamos os dois, no mundo,
entediados de nos sabermos
fortes, fora dos planos, enfim.

***

"segundo poema todo teu"

entra na casa, esta casa onde, por tantas
vezes, entraste sem perceber e, cada vez
mais dentro, saías de vez, mas agora não
sabes mais como sair – olha bem os móveis,
sente o peso das horas que, pela primeira vez
se apresentam arreganhadas, feitas de tecido
sem graça, soma de farrapos – mas olha bem.
não serão mais tuas estas horas, as paredes
te dão as costas, as portas de correr emperram,
estás sozinho onde tantas vezes disseste
a ti mesmo: “estou completamente sozinho”.
mas agora que estás, então não dizes nada.
percebes o ridículo: falas na segunda pessoa.
espera um pouco à porta, não olhes para dentro
do quarto pequeno, onde te espera à toa o corpo.
o ventilador roda noutra direção, e ali está ela,
que espantava as hienas e falava com mil sóis.
não te diz respeito o lugar para onde tantas vezes
fugiste sem pés de uma realidade seca, infame.
adeus ao quadro de Chagall, ao homem flutuante
em frente à Torre de Paris, adeus, Neal Cassady,
Kerouac, que primeiro te ensinou o abraço e,
acima de tudo, adeus aos braços, que se abrem
murchos para uma nova vertigem seca, sem pulo.
de costas para o muro ficas parado, voltas à porta:
não há mais porta, os caminhos se afunilaram
em gargantas abertas por navalhas de ferrugem.
não serão mais tuas estas horas e, em breve,
não serão mais tuas estas lembranças, nem tu
serás mais de ti mesmo, pobre órfão fugitivo.
ficaram algumas marcas de amor pelo chão,
agora ficam aqui lágrimas irreconhecíveis,
sabe-se lá de que são feitas, mas escorrem
como tudo o mais escorre para fora, adiante.
adeus incensos baratos à meia-noite pálida,
adeus às cortinas prateadas que escondiam
um segredo só nosso, e nem mesmo nosso.
adeus cigana de tantos dentes – diga adeus.
adeus Elis Regina, pintada por Andy Warhol.
adeus mesa feita de um antigo baú, adeus,
bares de esquina, cartas invisíveis de amor,
viagens não realizadas, concretizadas na cama,
até um dia bairro de Laranjeiras, vinho chileno,
adeus à toda intensidade da carne crua cansada.
“o mais profundo é a pele”, você dizia imitando
Paul Valery, mas agora adeus Paul, adeus pele.
ela que se encolhe agora na cama, sonhando
com tempos talvez mais leves, mas, meu amor,
se a vida não foi leve para nós, foi por dádiva,
porque somos os que podemos agüentar o peso,
somos os beneficiados com o espanto e a cura.
principalmente, agora, adeus manta africana,
com que ela te recebeu pela primeira vez,
jogando em seguida a chave pela janela.
aqui está a chave sobre a mesa, e dos dois
restou um livro de poemas, um livro médio,
um poema só dela, dos que fazem chorar,
e a chave do peito, essa que não devolverás,
essa que de tanto abrir e fechar fez carne viva
do que antes chamavas miséria, mas agora
chamas primeiro grito, susto que não se diz,
e não falarás mais nada, apenas amarás a ela
em preto e branco, como nos filmes antigos.


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