É MAIS ALÉM >> Carla Dias >>


"eu enxergo no escuro a luz que a noite revela
o feio que é força bela

e ela que nem sabe a beleza da fera..."

Beatriz Azevedo

Ao amigo que enxerga além tão fácil,
de um jeito bonito que só de se ver.


A casa parece deserta, mas não está. Desde que nela habita, as paredes vem colecionando seus segredos. É certo que, vez ou outra, ele tenta despistar a atenção dessas sinuosas invasoras de privacidade. Mas não demora e ele desiste e se entrega ao gosto de contar a elas seus recentes devaneios, a voz embargada, o soluço, a gargalhada. Uma delinquência emocional.

Tem horror ao liquidificador. Não é apenas o barulho que o endoidece, mas principalmente a ideia de se triturar tudo para nunca mais se ter o inteiro. Ele sabe o que é ser despedaçado, da dolência de ter de catar os cacos de si e depois passar muito tempo a montar esse quebra-cabeça. E nem sempre se sente inteiro.

Ele adora o silêncio sendo invadido pelas canções, principalmente as que fazem de conta que dizem isso, mas dizem é aquilo, o que dá no isso mesmo. Aprecia a jornada que é a descoberta do gosto de uma canção. Para ele é necessário saboreá-la, a tarde vazando do tempo, a luz adormecendo sobre as costas da noite. Quando ninguém mais tem o que dizer e todos adormecem de cansaço ou libação — ou porque as histórias que seus pais contam os embalam até chegarem a esse mundo onde todos andam de olhos fechados e bocejam —, então ele sente: a vida tatuando na sua língua o gosto, invadindo sua alma com gosto, permitindo a ele, novamente, gostar.

Ao observá-lo de longe, poucos alcançam a inquietação que se acomoda em sua alma, até porque ela parece ter alma própria que vive à sombra desse homem que, às vezes, rodopia, gira e gira, cai no mesmo lugar achando que mudou de país. E quando percebe isso, e apesar da tristeza, do desapontamento, ele dá o primeiro passo adiante, reinicia a viagem. Corteja o destino e seus véus de futuro inusitado.

Tenho comigo que ele aprendeu a tirar esperança da cartola... Que até faz bolhas de sabão com elas. Que surrupiou das gargalhadas das crianças a graça que vê nas coisas nem sempre assim tão graciosas, fortalecendo a leveza da pessoa que foi, que é, que há de ser.

Numa das suas conversas com as paredes, descobriu que precisava ver a rua, como quando jogava futebol com a molecada lá do bairro, ou ficava girando e girando, os olhos fechados... Sabe os desenhos em que o personagem fica girando por um tempo no mesmo lugar e acaba abrindo um buraco no chão e sumindo? Ele não... Ele parecia criar asas, um menino saindo do chão, chegando tão longe, tocando o sol, o ser, o céu, as lantejoulas dependuradas no universo.

A casa não está deserta. As fronhas dos travesseiros abarcam lágrimas de noites em que não sabia como ou quando. Onde? Mas são apenas moradias para momentos em que se flerta com abismos. E ainda bem que existe a máquina de lavar que faz com que fronhas chorosas se transformem em acomodação para os perfumes de amaciantes de roupa. Alguns são bem agradáveis... E a gente acaba sonhando com levezas.

Já na rua, o homem vai brincar de menino, de ter ousadias que adulto bloqueia, porque sim, porque acha que é isso que gente grande faz. Lembra dos rodopios e os olhos fechados? Soubéssemos o que ele vê... Mas nem às paredes esse segredo o moço conta, apesar da insistência desvairada das tais. Porém é fato: ele enxerga muito mais do que aqueles que, vista boa, olhos grudados na vitrine da vida, jamais enxergarão. Quem não sabe que o olhar depende da cadência da alma?

Sair para ver o mundo é jeito bom de restabelecer contato com a vida que também é vivida com os outros. Ele gosta de andar de bicicleta, enquanto visita suas lembranças e bota reparo nos próprios sentimentos. As paredes de sua casa endoidecem de curiosidade: “O que será que ele não nos contou?”

O céu, as ruas, as praças, os labirintos urbanos são testemunhas dos passeios do moço. Posso apostar que, como observadora que não faz questão de lógica ou de corroborar fatos, que ele se enche de amansamento quando pedala sua bicicleta alugada, como divindades o visitassem nesse momento, sussurrando em seu ouvido os mistérios da sua própria humanidade. E o homem resgata o menino, sem medo, sem tempo, os olhos fechados de tocar o céu, o seu, o meu desejo de enxergar além.

O olhar liberto das amarras. O coração aberto.


Imagem: pintura de Rob Gonsalves


Comentários

Carla, dia desses me perguntaram quem eu gostaria de ser além de mim mesmo. Eu respondi... (bom, não vem ao caso). A verdade é que agora deu vontade de ser o personagem da sua crônica. :)
albir disse…
Seu acalanto vai me ninar o resto do dia, mesmo que não me deixe dormir. Beijo, Carla.
Carla Dias disse…
Sabe, Eduardo, esse personagem não é tão personagem assim. Conheço bem esse moço, somos bons amigos. E numa conversa, fiquei fascinada por essa questão do olhar além... E de olhos fechados.
Nossa... Fiquei curiosa pra saber quem você gostaria de ser : )

Albir, Albir... Que bom é quando você me faz companhia. Obrigada.
Juliêta Barbosa disse…
Carla,

Se eu pudesse definir numa só palavra, a reação que o seu texto provocou em mim, escreveria silêncio, e você sentiria as minhas lágrimas. Obrigada por partilhar encantos.
Carla Dias disse…
Juliêta... Que suas lágrimas sejam de boas vindas a um tempo de felicidade.

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