TEM DIAS >> Eduardo Loureiro Jr.

lucas hoppus - flickr.com
Tem dias que a gente acorda com um engasgo no peito, na garganta, nos olhos. Tem dias que o sonho -- mesmo o quase amargo pesadelo -- parece mais leve que a vida, e os olhos resistem à luz do sol. Tem dias que é melhor deixar fechadas as janelas da alma mesmo com o quarto cheio de muriçocas. Mas até esses dias têm seus compromissos, seus afazeres, suas promessas a serem cumpridas de outros dias mais antigos e felizes.

Tem dias que a gente nem estranha quando liga o rádio do carro e o MPB-4 começa a cantar "tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu". Tem dias que a gente fala por falar, ouve por ouvir e faz tudo no piloto automático. Nesses dias, até a esperança desespera, os milagres parecem miragem e a crônica crônica não se permite ser escrita.

Vó Izolda e netosTem dias que a gente quer o escuro do quarto, o horizontal da cama, o silêncio da desconversa, mas se vê numa festa de família, na casa da amada tia, entre a avó de 87 anos e as grávidas barrigas da irmã e das primas. Tem dias que a gente tem que jogar crokinole com a sobrinha-filha, fazer gracinhas para o encantador filho da filha da prima, conversar sobre literatura com o primo querido, ver o vídeo emocionante da festa de 70 anos da mais velha tia, esperar a mãe e a irmã conferirem o enxoval do aguardado sobrinho, assistir à final da Liga Mundial de Vôlei com um bando animado de tios, primos e agregados...

Tem dias que a gente tem que deitar pra dormir com a namorada e percebe que ela foi uma boa companheira, que nos deu o merecido descanso, que esteve lá -- presença suave -- feito quem senta à beira de um poço seco e, ao invés de ficar batendo com o balde no fundo, se distrai com o céu, à moda de rezar pra chover.

Tem dias que têm noites em que a gente adormece agradecido pelo rádio, pela música, pela nossa gente, pela parentada toda. Tem dias que têm noites em que a gente sonha escrever, no dia seguinte, uma crônica pós-datada sobre um domingo que poderia ter sido o fundo do fundo do fundo, mas que foi a raiz da raiz da raiz, sugando o precioso alimento no escondido da terra.

Comentários

Debora Bottcher disse…
É, Eduardo... Tem dias que são assim mesmo - e vc definiu de um jeito que todo mundo sente, entende e vive vez ou outra...
Mas ainda bem que novos dias amanhecem, não? Com outra roupagem, outro brilho, novo sol...
Beijo enorme e boa semana.
Tia Monca disse…
Junoca,
Que o precioso alimento, sugado da terra, sustente você até o próximo "almoço de domingo".
Gostei do dia, da namorada companheira, da crônica e da pizza do dia seguinte :o)
Desejo cada dia melhor que o anterior.
Bj,
Tia Monca
Kika disse…
Que bonito Eduardo.
Você descreveu um dia que todo mundo tem, mas a gente nunca consegue descrever. Adorei esse texto!
beijos
Ana
Juliêta Barbosa disse…
Eduardo,

Que a sua solidão criativa seja sempre reflexo do encontro com as suas raízes. Nós, os seus leitores, só temos a ganhar...
Tem dias que não parecem domingo, porque não encontramos sua crônica aqui...Que bom que o dia seguinte nos traz boas notícias.
Gente, nesse retorno de viagem, com várias pendências para atender, permitam-me uma resposta coletiva: saber que vocês estão lendo me dá força pra escrever mesmo quando, raramente, escrever não é fácil. Grato pelo carinho de ler e de comentar. Beijos,
Carla Dias disse…
Tem dias em que a gente espera menos e ganha mais... mais do que o suficiente para encarar com graça aqueles dias que às vezes são noites. Como hoje... Tem esse dia em que ler suas palavras elevou minha alma e aqueceu minha humanidade. Obrigada por isso.
monica disse…
Tem dias em que manhã ensolarada nos parece céu cinzento. Tem dias em que minutos de tristeza teimam em parecer eternos. Tem dias em que palavras expressas em textos revelam-se: esperança!
Salve a esperança, monica! :)

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