DESCORTINÁVEL >> Carla Dias >>


Sonhos recorrentes me inquietam...

Ser recorrente me assusta.

Não dizem (digo) que tudo já está na fase do reinventado (invertido)? Toda história já foi contada, e agora o que vale é a lábia, a doçura, o erotismo vestindo o olhar desbotado, inócuo. O dito que é desdito na tentativa de se angariar releituras.

Releituras me intrigam... Que fique claro que releitura não é cópia, mas uma forma diferente de se alcançar o significado (se isso é possível) do que já foi criado. Dizê-lo de forma diferente. Olhá-lo com mais afeto do que o julgamento que acompanha quase todas as observações nossas sobre as crias alheias, principalmente quando desejamos demais sermos os pais delas, não somente seus autores.

É preciso haver humildade para que uma releitura seja gratificante. Para que seus cantos, avessos, assimetrias, fragmentos sejam rearranjados de uma forma muito mais bela, valendo-nos sempre da beleza que transborda das disparidades.

A releitura do vôo rasante me remete aos refúgios emocionais, como este onde me encolho na tentativa de compreender o que se esconde em meu dentro e anda me tirando o sono.

Fustigando-me com sonhos recorrentes, como aquele em que me sento em uma cadeira, no meio do mundo, e as pessoas desaparecem. E eu espero que voltem, sentada, quieta, mãos repousando sobre as pernas, o olhar ressabiado, mas apaixonado pelo adiante. E envelhecendo não somente o corpo, mas também a esperança de viver intensamente até mesmo as banalidades.

Estou como numa canção rearranjada, notas esquálidas sendo aquecidas e abrigadas por fermatas e sua intrínseca sede por.

Não repaginada... Não me atrai essa definição. Não me seduz esse movimento. O que me interessa é a reinvenção das coisas que já foram coisificadas no dicionário da pretensão humana. Aprecio quando seus significados embaçam e embarcam em mais uma sessão de melodramas e tragicomédias, desvendar mistérios e aceitar limites. Nessa pulsação de não saber pra que lado correr eu sei que há vida.

Sabe?

O que conta é com qual roupa o sentimento sai da carcaça, se dança baião, salsa ou se é apenas um balé desengonçado sobre medos e ausências, não importa. Se ao se refestelar na vida a vive, e dói, ama, corrói, beija, abraça, abandona, esbofeteia é que conta.

O que importa é a vida que não seja recorrente, mas que se liberte da repetição ao ser sorvida pelas peculiaridades de cada um.

Apesar de me olharem aqui, sentada na minha cadeira, já cansada da espera, quase caindo no sono, sou das reinvenções e dos regalos. Posso não ter o inglês afiado, o português ser capenga, e ter medo do escuro e de ser vitimada por uma autopiedade desandada, só por ter me cansado de enfrentar as desavenças entre o meu destino e a biografia que construo a partir das minhas escolhas.

A possibilidade me tornar recorrente me deixa agoniada que só...

A certeza de não ser capaz de me tornar recorrente me conforta. Mesmo que tenha de voltar ao ponto de partida mais vezes do que penso possível.

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