PIRATA FANTASMA >> Eduardo Loureiro Jr.

David Alvarez Montalbán - Flickr.comTem coisas que nem mais existem, mas continuam a assombrar as pessoas.

Algumas vezes, de maneira inofensiva, como nos ditados. Tem muita gente que diz que pegou o bonde andando, embora nunca tenha visto um bonde na vida. E tem aquela turma que insiste em dizer que lhe caiu a ficha, embora já faça mais de 10 anos que os telefones públicos são a cartão. Tudo bem, cada doido com a sua mania, desde que não nos obriguem a pegar bonde — andando ou não — nem a virar orelhão de museu.

Que tal os piratas? vocês já viu algum pirata sem ser nos bailes de carnaval? O último pirata de verdade já deve ter virado pó dentro de alguma cova na Inglaterra, mas o pessoal insiste com essa história de pirataria.

Segundo a terceira definição do Aurélio — o dicionário, porque o estudioso também já nem existe mais —, pirata é o "indivíduo que comete pirataria, que não respeita os direitos de autoria ou de reprodução que vigoram sobre determinadas obras ou produtos (literários, musicais, de informática, etc.), seja produzindo ou utilizando cópias ilegais dessas obras ou produtos." Ou seja, o pirata perdeu o chapéu e o tapa-olho, e pra mim não tem mais graça. Entre a primeira definição clássica — "bandido que cruza os mares só com o fito de roubar" — e a terceira definição atual, existe a segunda definição, que é de ligação: "ladrão, gatuno". Então, resumindo, pirata hoje seria aquele que rouba o patrimônio alheio, produzindo ou utilizando cópias ilegais de obras e produtos.

Perfeito. Tudo certo. Já que o inimigo foi definido, caça aos piratas! Para a prancha com eles!

Mas a coisa não é tão simples assim, porque sendo o pirata alguém que desrespeita direitos que vigoram na sociedade, então não vale a definição do Aurélio apenas, há que se consultar também a lei, no caso do Brasil a lei anti-pirataria nº 10.695, de 01/07/2003. O que falta no Aurélio, e que está presente na lei, é uma frase repetida nos três parágrafos que caracterizam a pirataria. Nas três caracterizações, está escrito: "com o intuito de lucro direto ou indireto".

O quarto parágrafo fala de uma exceção, "a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto", e indica limitações ao direito autoral presentes em outra lei, a de nº9.610, em seu artigo 46 (vocês podem ler aqui).

Então se trata de uma questão econômica e o maior prejudicado — supõe-se — é o autor da obra. Calma, calma, não vamos colocar o carro na frente dos bois — afinal quase não há mais carros de boi. Vejamos alguns casos, façamos alguns testes pra verificar nossa habilidade em reconhecer a pirataria e o pirata...

CASO 1. Uma gangue de falsificadores faz cópias de DVDs e as vende por um quarto do preço. Ah, essa é fácil: pirataria da grossa!

CASO 2. Uma editora faz mais cópias de um livro do que aquelas que, em contrato, ela combinou com o escritor. O escritor não recebe percentual algum sobre a venda das cópias a mais. "Como assim?!", você vai dizer, "não sabia nem que isso existia." Pois é, meu caro leitor, isso aí existe mais do que bondes, telefones a ficha ou carros de boi. Pirataria da fina...

CASO 3. Usuários de internet compartilham, gratuitamente, arquivos de músicas e de filmes. Tá certo, quase todo mundo já baixou uma musiquinha aqui ou ali, mas vamos admitir que é pirataria, certo? Ou não?! Se pensarmos no Aurélio, na produção e na disponibilização de uma cópia não autorizada, é pirataria. Se recorrermos à lei que pune o intuito de lucro direto ou indireto, o pirata escapa, ou tem a pena amenizada. Pirataria duvidosa essa.

Mas o que é que se pirateia mesmo? A obra? O registro da obra? Ou o suporte da obra? Pergunta besta, né? Ou então complicada demais... Perguntando de outra forma: o que se pirateia é o texto (trabalho único do escritor), a edição (acrescido o trabalho do editor) ou o livro (incluindo-se o trabalho do impressor)? Se eu copio um livro inteiro e o vendo — alguém lembrou das xerox das universidades? —, a pirataria é suja como água suja. Mas e se alguém escanear, digitalizar o livro, e vender o arquivo? E se não vender, se distribuir gratuitamente? Estaria ainda cometendo pirataria contra o impressor ou apenas contra o editor e o autor, já que não está em questão o livro em si, de papel? E as livrarias que, com o intuito de lucro indireto, permitem a possíveis compradores ler um livro inteiro na loja, sem comprá-lo? (Eu mesmo leio muitos livros infantis — inteiros — em livrarias.) Nesse caso a livraria não estaria pirateando, se não o impressor e o editor, pelo menos o autor, que teve seu texto distribuído de graça?

Labirinto intrincado esse, não? Vamos dar uma pausa então para um cafezinho, ou para o recreio...

Hoje um amigo me enviou um e-mail com um texto do Luís Nassif sobre o aniversário de 65 anos do Chico Buarque. Belíssimo e emocionante texto. Chegou bonitinho na minha caixa postal. Ganhei o texto de graça. Quem pagou por ele? Talvez o portal iG, de onde o Nassif é colunista. Suponho que o iG quisesse que eu — e toda a torcida do Flamengo — visse o banner que está na página onde o artigo foi publicado. Mas eu não vi o banner porque meu amigo, ao invés de me mandar o link, enviou o texto limpo e cheiroso direto para a minha caixa postal. Meu amigo cometeu pirataria? Sim!!!!!!!!!!!!! Não!!!!!!!!!!!! Coisa de criança na cabine acusticamente isolada de um antigo programa do Sílvio Santos.

Isso me faz lembrar das velhas fitas-cassete, em particular de uma que um outro amigo meu gravou pra mim há uns 15 anos. Que seleção maravilhosa de sambas e MPB! Foi ali que ouvi, pela primeira vez, "Para ver as meninas", do Paulinho da Viola, na voz do Jards Macalé. Naquela época os piratas ainda estavam desexistidos, então — se não houver culpa retroativa — não cabe nenhuma suspeita de pirataria sobre esse meu outro amigo.

O que há de comum entre o e-mail com o artigo do Nassif e o cassete com a música do Jards Macalé é que eu não teria lido o artigo nem ouvido a música se meus amigos não tivessem feito essa reprodução — talvez ilegal. Eu não era um consumidor em potencial nem do portal do Nassif nem da gravadora do Macalé. Por isso, sorrio ironicamente diante daquelas estatísticas que dizem que a indústria cultural perde não sei quantos bilhões de dólares com a pirataria. Pode até perder alguma coisa, mas não são esses bilhões alardeados, não. Contabilizar esses bilhões é como contar com o ovo no cu de uma galinha que — no mais das vezes — é galo. Muita gente compra produto pirateado porque é barato. Se fosse algumas vezes mais caro — como é o caso do produto original — não compraria.

No final do ano passado, quando o Sol estava fazendo seu passeio anual de 30 dias pela Casa 12 de meu mapa astral, a casa do isolamento, época em que tudo que tenho vontade de fazer é me trancar num quarto e ver filmes, baixei — via internet — uns episódios de algumas séries de TV. O que vi mais foi Heroes. Tirei duas conclusões. Primeira, dificilmente eu teria pego o seriado numa videolocadora — pra começo de conversa, com o Sol na casa 12 eu não teria nem saído de casa. Segunda, hoje posso até pegá-lo numa locadora (ainda não fiz isso porque é o seriado é viciante), e, além disso, faço propaganda dele (pelo menos da excelente primeira temporada, que foi o que vi) sempre que estou numa roda de amigos e a conversa é seriados.

A distribuição não autorizada, principalmente a que não tem intenção de lucro, pra mim funciona como o artigo e o cassete que ganhei de meus amigos: ela abre a possibilidade de conhecimento, ela serve como experimentação, e, a médio prazo — senão a curto prazo mesmo —, tem um impacto positivo para aqueles que foram supostamente lesados ou pirateados.

Nós estamos vivendo em uma época estranha, de transformação de modelos, e é importante ficarmos atentos para não pegarmos bondes que não circulam, derrubarmos fichas que não existem e caçarmos piratas que não assaltam.

O bom senso aqui talvez seja marcar colado os que objetivam lucrar com o trabalho alheio (ah, se o Karl Marx ainda existisse), e dar o benefício da dúvida àqueles que só querem compartilhar a alegria de ler um bom texto, ver um bom filme ou escutar uma boa canção.

P.S.: Para os amigos que preferem minha prosa poética à minha prosa prosaica, deixo um prêmio de consolação.

Comentários

Juliêta Barbosa disse…
Eduardo,

Gostei do seu texto, uma aula sobre a pirataria e como se posicionar sobre ela. O caso 2. me deixou surpresa... Eu,realmente, não sabia! Obrigada, por essa informação de utilidade pública. Visitei o seu outro espaço e adorei."Minúsculos Poemas" é tudo de bom!
Alba Mircia disse…
Belo texto informativo! A poesia está em você: no seu semblante masculino, no olhar firme, na voz... até na "brabeza" que, inutilmente, tenta aparentar preguiça desse coração guerreiro reconhecido deste coração que cheira a volta pra casa.
Cristiane disse…
Eduardo, estes dias mesmo fiquei impressionada com a notícia sobre uma mulher, nos EUA, que terá que pagar multa de quase 2 milhoes por baixar 24 músicas da internet (http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2009/06/18/mulher+pagara+multa+de+quase+us+2+mi+por+download+ilegal+nos+eua+6822940.html).

É muito estranho esta questão da pirataria. Estou com você, concordo com tudo que disse. Vale o velho e bom senso.

Bjos
Pois é, Juliêta, tem coisas que fazem cair o queixo até de um jacaré. :) Que bom que você gostou do prêmio de consolação dos minúsculos poemas. Fiquei feliz com o retorno de seus comentários.

Querida, tô gostando de ver. :)

Cristiane, essa notícia foi um dos detonadores da crônica. :) Se bem que essa mulher aí vacilou, porque já tinha sido processada antes por distribuir 1.700 músicas. Quanto ao bom senso, lembrei de uma querida professora de faculdade que estava me orientando a fazer um projeto. A certa altura, ela disse: "Em último caso, use o bom senso." Eu repeti a frase pra ela, e rimos juntos. Às vezes, a gente deixa o bom senso para o último caso quando ele deveria ser o primeiro caso. :)
Carla S.M. disse…
Menino, eu também sou viciada em Heroes :)
Ótimo texto. Só faltou a mesa de bar e a cerveja, pois senti que estava no meio de uma reflexão entre amigos numa Happy hour. E a saideira foi o poema.
Grato, C. S.. Mas eu vou de cajuína, viu? :)

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