ESQUELETO DE UMA CRÔNICA >> Leonardo Marona

“Escrever passa a ser uma ação fundamental, porque dela depende a sua existência”, dizia o escritor, em entrevista sobre seu novo romance.

Chega uma certa hora e todo mundo se entrega. Os fortes se entregam, os fracos, os catadores de legumes se entregam, os ricos de grandes papadas, os vaga-lumes em festas químicas, as várias mulheres dos gigolôs, os que rodam as rotativas se entregam e, muito antes deles todos, o escritor se entrega, olha em volta, de certa forma sorri, o sangue verde entre os órgãos.

É profundamente obrigatório ao escritor, antes de tudo, se entregar sem arestas, sem forçar a caricatura que se mostra intransponível. Dizer a si mesmo: “muito bem, sei que não se trata exatamente disso, mas não há o que fazer, há que se continuar”. Pois que o escritor é, antes de tudo, um ralo por onde escoam objetos interligados em conexões instantâneas, que não permitem afinidades. E a interligação entre os objetos é a única coisa com que o escritor deve se preocupar. Acima de tudo, ele é alguém que não precisa influir, porque é parte de tudo. Ele deve se acostumar ao fato de que não haverá controle. Não haverá mãos banhadas em óleo empunhando bandeiras sifilíticas, pois que o escritor leva a hipocrisia no bolso e a falha eterna no coração suscetível. O escritor é mais que um fingidor. É um derrotado feliz, sem saída, torcendo pela falta de leito.

Agonia-se por isso, não há dúvida. Muitos morrem cedo, de tiro na cabeça ou vaidade crônica. Dizem por aí que você pode ser uma pessoa normal e escrever. Mas é claro! Assim como você pode também ser uma pessoa morta, e viver. “Importa somente deixar a situação te levar para o desconhecido”, completava o escritor, o jovem escritor, falando sobre seu novo romance.

Não havia, portanto, motivo para continuar lendo sobre o que pensava o laureado escritor. Deixar para outra hora. Não posso continuar, não quero continuar, não devo continuar. Vou continuar. Que literatura fria essa das frases exatas, glaciais, de boca reta e eficiência eqüina. Levantar, limpar as prateleiras, começar aquilo, lá atrás, aquilo que uma vez se disse e que jamais se começou: “No meio do areal interminável havia uma placa fincada em terra podre, terra onde não nasce nada, mas havia uma casa no meio do nada, havia uma truculência surda da jardineira como um bêbado atravessando o exército alexandrino. A placa apontava uma família com umbigos curiosos e galinhas misturadas a cães magros, e não havia mais nada, além da placa, nos padrões da legislação de trânsito federal. Na placa, escrito apenas: 'SOLIDÃO'”.

Repentinamente um baque. Após todos esses anos sentindo que sentia menos que os outros, que eles tinham algo como que um compartimento a mais no cérebro, que fazia com que não se afetassem com absolutamente nada e nada é aquilo que se move, ou muito pouco era capaz de derrubá-lo, a mim sereno, a barba feita, os cílios egípcios, a falta primordial daquilo que se esbanja, mas com um único sopro pode se fundar a China do novo século.

Portanto, um baque. Maldita prolixidade, que é a fuga do foco inevitável. Chegar mais perto, portanto. Não a ponto do nojo, mas da discrição. Olhar no espelho e reparar finalmente o motivo de toda culpa como se algo errado tivesse acontecido no momento irreconhecível quando toda a coisa se desenrola, e de que chamar a coisa além de coisa?

Depois da culpa, a constatação: não sentir mais o cheiro das coisas, que não se chamam. O acúmulo do que mal pode viver. Pois no vivendo já se mata. Causa essa obstrução do nariz, o entupimento da veia real que borbota idéias constrangedoras. Mas a letra, a letra não ajuda. A letra é síndrome da falta de coragem. Bigodes postiços, a letra é lepra do que falta na alma e sobra para as traças. A letra serve para absolver ou matar, nada mais. E não se carrega o caixão nas costas com palavras preciosas.

Essa ausência ruim do acúmulo de todas as forças num segundo. O quarto fechado onde as vidas misturam suas doenças e murcham sobre os ossos. Impedir ou não o aborto anunciado? Abortar ou não a vida pelo avesso?

Mas o que me restaria se não fosse isso? O inchaço. A tentativa de abstrair-se de tudo, a inteligência mínima dos que sentem demais – e não entendem absolutamente nada.

Não há dúvida, sou um sujeito perigoso. Sempre olho para os carros das janelas mais altas esperando o calafrio que causará aquela sensação indescritível de se sentir caindo, até que se chega para trás, para se salvar, e morre-se de vez.

A negação do absurdo é meu único convívio diário. A negação e a fuga do absurdo. Mas o absurdo é como um carrossel, e eu não havíamos entendido (sic). O que foge sempre encontra seu destino. Não há perdas nem ganhos. Só a terra se alimenta no fim.

Às vezes eles dizem: “Escreva tudo. Ponha no papel o que está sentindo”. E a mim soa como se dissessem apenas: “Seja um porco. Alimente-se da sua depressão”. Mas minha vontade maior é sempre fugir. Fujo sem me levantar da mesa. Fujo com amor e não peço perdão jamais, a não ser por coisas imperdoáveis.

Mas isso aqui não é um confessionário. É um espaço onde pessoas que não se conhecem expõem suas opiniões ou mesmo devaneios, experiências pessoais ou geradas pela imaginação ou pela simples caminhada. Mas pouco importa, frase conhecida. Os olhos apontam a falha do sangue, a falta de falta. E não deixa de ser a mesma coisa, dado que tudo é uma confusão de signos e não sabemos mais nem mesmo porque ainda nos apertamos as mãos e desejamos boa sorte.

Isso não interessa nada. Todos somos autores, no fundo. Mentirosos com algum motivo e muitas explicações que não sabemos dar, mas estão lá, estampadas em nossas faces quando entramos e saímos dos escritórios e das repartições de mulheres gordas que tomam cerveja e lixam as unhas. Mas não podemos jamais parar e pensar porque isso estouraria o nosso cérebro, essa máquina feita para formular questões pela metade, que terminam como bombas de hidrogênio e membros amputados em pequenas populações chupadas até o caroço.

Balela! Isso é um endereço virtual de opiniões, como eu ia dizendo. Depois de mim, que tenho as sextas-feiras, quando, suponho, as pessoas normalmente têm coisas mais interessantes para fazer do que ler uma crônica do dia – mas depois da minha sexta-feira número 6, virá o sujeito do sábado número 7, a moça bonita do domingo 8, e eu poderia repetir uma porção de estereótipos, porque a nova rede me permite não conhecer nenhum de vocês e, ao mesmo tempo, estar com vocês. De um certo modo, isso é triste demais.
para comprar o livro "pequenas biografias não-autorizadas" (poesia, 7Letras, 2009, 86 pags.), escrever para leomarona@gmail.com

Comentários

Carla S.M. disse…
Não acho triste, não. Acho um privilégio estar e não estar com você no momento que leio suas crônicas. Seja na sexta ou em outro dia qualquer.
Ah, Léo, o fascínio das radiografias: ao mesmo tempo o detalhe específico daquele corpo e a constatação de que os corpos todos se parecem muito. :) Essa sua radiografia é pra colocar na parede, bem iluminada. Belo texto.

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