PLÁGIO BARATO DE CAIO FERNANDO ABREU >> Leonardo Marona

Você me fala do meu poema sobre Zelda Fitzgerald, você fala de mim como se eu fosse um touro corajoso e pronto para qualquer capa vermelha, você diz que sou algo que “impulsiona, rebela, explode”, diz que sou lindo, “um homem lindo”, e não que isso seja tudo o que preciso ouvir alguém dizer, até porque reconheço bem essa sensação de formigamento quando nos sentimos presentes de alguma forma na vida de alguém, sei quanto tempo dura, reconheço que, daqui a minutos, estarei outra vez batendo com a cabeça na parede e ouvindo Tim Buckley. Principalmente, sei da minha farsa, e ter amor em sabendo a farsa: não há dádiva maior. Mas você fala e isso é tudo o que importa. Você fala, te imagino de olhos fechados e unhas pintadas, a tinta descascada e os sonhos comidos pela peste, mas os olhos mantêm aquele brilho fundo de uma ternura metálica. E, então, você fala. Fala que vai musicar meu poema chamado Zelda Fitzgerald, a mesma que pegou fogo na cama de um sanatório enquanto o marido se gabava com desconhecidos desdentados e era roubado em bares imundos: “Sou o maior escritor americano vivo”. Mas que importam Zelda, Scott, se agora posso reconhecer com leveza a mentira da intensidade, porque é por estar completamente vazio que li com beleza a carta em que você falava. Falava sobre uma viagem ao sertão-sul do Ceará, “no pé da chapada que leva até Pernambuco”, falava de um determinado português que encontrou por lá e que era a cara do seu ex-namorado – “o amor da sua vida” – e que pediu a este completo estranho, cuja lembrança ilegítima uma vez amara (nossa, isso ficou tão Charles Dickens!), mas eu digo isso, ainda que não reste muito das minhas unhas negras e eu seja apenas um proletário que perde um filete de ternura a cada carregamento de perdão à casa dos acorrentados, mas importa agora enquanto te respondo apenas QUE VOCÊ AMAVA, porque neste português desconhecido de quem você ouviu meus poemas “em Sintra, em Lisboa”, e nele você não via nada, mas sentia a mesma coisa que da outra vez também não viu, porque o que importa mesmo não se vê. Sim, compreendo, o português recitaria meus poemas, você poderia ouvi-lo de outra forma que não a sua e, veja bem, nem mais sei quem escreveu os malditos poemas, já que – imagine! – a surpresa pela forma da tua emoção diante da emoção alheia para mim é dizer a frase: “Veja o poema tomando forma própria, não sendo mais meu (essa miséria sem cordão umbilical) que é o ideal de qualquer coisa que se possa decalcar em árvore ou tornar-se crime”. E agora será inevitável segurar o passo e engolir o choro, já que Tim Buckley insiste com “Blue Melody” e eu nem bem comecei minha terceira cerveja, mas ainda leio o que você fala, veja bem, “eu LEIO o que você FALA”, são coisas com asas e âncoras sutis, são cílios bem-feitos no rosto de um decapitado, de uma beleza como nos quadros pré-religiosos; e você lembra que em algum lugar ainda é verde, “muito muito muito verde” e você diz que eu deveria comprar uma passagem azul e ir lançar meu livro nesse verde todo, e ainda tem o fato de que você também está com seu livro na prensa e roendo as unhas, e então de alguma forma somos um grupo de unhas descascadas, roídas e ainda têm as viagens que precisamos fazer, você diz: “Precisamos viajar para divulgar o livro, além do que é divertido”, e fala das expectativas sobre Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Salvador; fala sobre um carinho especial por Salvador – e quem não tem? – e que as coisas vão mal, as olheiras crescem sem vergonha, as luzes piscam e cegam nosso discernimento seletivo entre restos nobres; você fala também do sol, da sorte, de imagens pulsantes, cobertas por uma lava negra, prato cheio para lâminas e poemas óbvios; fala de coisas que se pode esperar já que não estão em lugar algum. Aqui Tim Buckley acabou. Mas eu “mantenho o som da sua voz nos meus ouvidos”. Ou, pelo menos, algum ouvido, nem que seja para despejar algo queimando.

Comentários

Léo, engraçado é que estou lendo um livro, um romance, que consiste em trocas de cartas que giram em torno de leitura e literatura, e a sua crônica se encaixou bem no ritmo da minha leitura. Ah, o livro é "Sociedade literária e (d)a torta de casca de batata". E fiquei curioso pra conhecer sua leitora. :)

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