OUVIR CONTAR [Cristiane Magalhães]

Sabe aquelas amigas que a gente conhece no final da adolescência, mas que parece que foram nossas confidentes a vida toda? Tenho a alegria de ter uma amiga assim. Tempos atrás, ela estava começando um relacionamento e me revelou um temor que a assaltava sempre que novos amores se iniciavam. O medo dela não era que ele tivesse chulé, fosse grosseirão, falasse tudo errado, que tivesse uma mãe “naja”, uma ex-mulher psicopata ou filhos pestinhas, que fosse “mão-de-vaca”, conversasse com a boca cheia, enfiasse o dedo no nariz na frente dos outros ou que fosse covarde, medroso, alcoólatra, sadomasoquista... nada disso a assustava. O que ela temia de verdade era que o assunto acabasse.

Imagina: quatro, cinco, onze meses de namoro é tempo suficiente para contar das traquinagens da infância, dos amores da adolescência e das besteiras que fazemos na juventude. É tempo bastante para conhecer sogro, cunhada, cachorros e colegas de trabalho. Neste período, revela-se o passado e as pretensões do futuro. E, segundo ela, o assunto poderia acabar. "Será?", argumentei incrédula. Assunto não acaba. Nunca vi assunto acabar... mas ponderei a situação com as considerações que ela apresentou. Se era assim, talvez o assunto acabasse. “Já contei daquela vez que fomos acampar e um amigo que havia bebido demais acordou de madrugada e pegou um galho de árvore e saiu gritando feito maluco achando que era uma cobra?” “Já, já contou sim” “Ah... hum... teve um carnaval em Diamantina que...” “Você já contou isto também”. Putz! E o tédio de não ter nada de novo para contar se instauraria entre os dois, decretando o fim do relacionamento.

Três anos depois, estão de casamento marcado. Somam-se ao currículo do casal duas viagens internacionais, em que conheceram três países diferentes, além dos inúmeros roteiros nacionais, incluindo mergulhar juntos em Bonito, subir serras, tremer de frio no Sul e morrer de calor em praias paradisíacas Brasil afora. Tudo um coladinho no outro. Contabilizam-se, ainda, três carnavais, réveillons, aniversários, natais. Os dois tem muita história na bagagem. Falta é tempo para contar tudo, sempre esquecem algum detalhe relembrado naquele próximo encontro com os amigos – amigos de um lado, amigos do outro.

Assunto não acaba quando se convive diariamente. Assunto acaba é quando se fica muito tempo sem se ver. Assuntos são feitos de pequenos detalhes que não contamos para quem esteve por muito tempo distante – somos feitos da matéria destas pequenas bobeirinhas. Ninguém fala do rádio alto do vizinho, do chilique da sogra ou das imaturidades do irmão para quem está muito tempo longe. E são esses detalhes que nos compõe.

Pense na seguinte situação: você reencontra aquele amigo de infância com o qual compartilhou décadas de bons momentos, mas que se mudou para longe há seis anos, e se falam, esporadicamente, naquelas listas de e-mails que não dizem nada. O que acontece? “Meu amigo querido, quanta saudade!” “Quanto tempo! Lembrei de você tantas vezes, senti muito a sua falta, sabia?!” “É, eu também” “Mas aí, o que me conta de novo?” “Pois é, rapaz, casei, tive dois filhos” “Dois, cara?” “É, a mais velha está na escolinha até.” “Como está sua família: sua mãe, seu pai, aquela sua irmã?” “Você não soube? Ah, .....”. E assim o assunto prossegue durante uns 40 minutos, no máximo, contando as “coisas grandes” que aconteceram nos últimos cinco anos: quem morreu, quem casou, quem se formou, quem trocou de emprego. Um conta, outro conta e, quarenta minutos depois, o assunto acaba.

Como assim o assunto acaba? Não pode acabar! É o meu amigo de infância, que comigo fez tanta bagunça e compartilhou segredos e descobertas. O assunto acaba, inevitavelmente, acaba, fatalmente acaba. Fica aquele constrangimento de mãos, sem saber onde colocar, o que mais perguntar. Não faz sentido contar aquilo tão íntimo que te aflige nas noites insones, do curso de alemão, das chatices da sua mulher, da beleza dos desenhos das nuvens. Não, não faz sentido algum, este “cara” nem o conhece mais. Como ele vai entender a pessoa que você se tornou se não compartilhou as pequenas e inevitáveis mudanças que se processaram diariamente? Vocês são dois desconhecidos com um passado em comum. Apenas isto.

É preciso estar muito junto para se ficar mais junto ainda. É preciso contar sempre e ouvir sempre, para não parar de contar nunca. O bom desta história é que tem assunto novo acontecendo a todo o momento e, se um amigo antigo quiser ser um amigo novo, de novo, é só ficar bem juntinho e não parar de contar nem de ouvir, que rapidamente o assunto volta. Afinal, assunto não acaba, o que acaba é a intimidade, mas esta é outra história.


Palimpsesto

Comentários

Pois é... Isso é verdade, mas tem amigo que a gente encontra depois de muitos anos e parece que viu ontem, que nunca deixou de falar... É mais raro, certamente, mas eu tenho uma amiga assim - dessas com quem não falo nunca (agora acho que já são uns cinco anos de novo!), mas sei, por outras vezes, que quando a vir, o assunto não acabará porque a intimidade não acabou, está lá, no fundo da gente, mesmo que a distância e o tempo tenha aberto uma lacuna...
Mas eu já tive essa experiência de encontrar uma amiga querida e não saber o que dizer depois do 'resumo' do tempo passado longe... É chato - e dá uma certa tristeza também...
Beijo, bonita.
Carla S.M. disse…
Concordo com a Débora. Aliás, descobri-me apaixonada por alguém que nunca via e acabei casando com ele (... 7 anos depois a gente ainda arruma assunto novo!).Moro tão longe e quando visito os que me são caros, 1 mês é pouco para tanto assunto!! Fora as amigas verdadeiras com quem tenho tanto assunto - depois de anos sem ver - a ponto da gente atropelar os assuntos, dar voltas, lembrar de outros, fazer comentários e... continuar o assunto principal... tudo em uma tarde.

Mas acho que você tem razão quanto às pequenas coisas que nos compõem. E é disso que sinto mais falta: fazer parte do cotidiano dos amigos queridos e família.

Bj
Cristiane disse…
Meninas, vocês tem razão! Há amigas(os) que mesmo quando ficamos distantes por anos não perdemos a intimidade, então, o reencontro é sempre como se tivéssemos nos despedido ontem.

Beijão!

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