ORAÇÃO DO ANJO >> Carla Dias >>

“Não permita, Deus, que eu morra/sem ter visto a terra toda/Sem tocar tudo que existe /Não permita, Deus, que eu morra triste”
A terra toda tem sido as notícias que chegam por e-mail, pela televisão, pelo jornal, pelo telefone, pela boca da vizinha fofoqueira. As conversas com as tias, irmãs, com mãe e amigas, durante um café, uma coca-cola, um bom vinho ou uma caipirinha de saquê com maracujá, durante a secura, a aridez da ausência de nem sei o que pode ser.
“Dai-me a graça/de viajar de graça/por essa esfera afora/de virar uma linda senhora /Uma linda lenda”
Conheço lindas senhoras... Algumas delas sorriem com o olhar, silentes, como se guardassem os segredos das gerações que antecedem a sua. Outras são alegóricas, com suas roupas coloridas e suas gargalhadas escandalosas. E há aquelas que aprumam a confiança dos que as cercam, cerzindo roupas, enquanto emendam a confiança num futuro menos complacente com a indiferença que traveste de desimportante aquilo que é fundamental.
“Tecer cada fio da renda/Contar cada cacho/de cabelo de anjo/Transformá-lo num bonito arranjo/da mais bela canção/Tecer cada cacho/de cabelo de anjo/Transformá-lo num bonito arranjo/da mais bela canção"
É recorrente o questionamento que faço sobre as coisas que crio. Qual a importância de um poema, enquanto tantos perdem suas vidas em tragédias? E de que vale a música se verdades são caladas em prol de de interesses particulares?
Às vezes, chego mesmo a achar que o que faço não tem importância alguma, que se trata somente de uma forma de passar pela vida, como quando lemos uma revista no consultório, enquanto esperamos ser atendidos. Mas então eu me deparo com o que desperta em mim um poema do Vinícius ou do Quintana, uma canção do Chico Buarque, os tambores da Índia, do Brasil, as rimas, as prosas, as imagens, as cenas, as guitarras, as cítaras, os violões, as vozes em conjunto, sons habitando um espaço que, logo adiante, chamaremos de canção.
Coisas que me despertam para o mundo que temo perder sem ter ganhado. Cair no mundo requer a habilidade de não se arrepender por partir, tampouco por ter de voltar.
“Não permita, Deus, que eu me vá/sem sorver esse guaraná /sem espalhar meu fogo brando/e acalmar a brasa do mundo”
O mundo eu às vezes interpreto como aquele lugar de lonjura imensurável, mas que podemos alcançar pulando a cerca que dá no jardim vizinho. Sempre tão longe, quase sempre tão perto, ele deseja nossos pés caminhando na sua tez. Nós desejamos seu horizonte, sua imensidão, seu cenário de diferenças que podem nos levar a tantas conciliações interiores.
Outras vezes, confesso, ele cabe inteirinho na visão daquele que caminha adiante, a vida estampada nas buscas, completamente distraído de mim, mas detentor de todo afeto que posso sentir. E nesse mundo florescem fascínios, mesmo diante da aridez.
“E aquecer mais uma vez/o coração do universo/nas contas do meu terço /nas cordas do meu violão”
O coração do universo bate apressado. Meu coração em suas mãos.
Oração do Anjo por Ceumar, de Ceumar e Mathilda Kóvak.
Comentários
Ah, eu entendo tanto isso:
"Coisas que me despertam para o mundo que temo perder sem ter ganhado. Cair no mundo requer a habilidade de não se arrepender por partir, tampouco por ter de voltar."
Mas mesmo sentindo que sei do que você fala, jamais conseguiria expressar desse jeito tão encantado.
beijo grande, Carla.
Não sei quem está mais bem acompanhada nesse dia crônico, se você ou se a Ceumar. Coisas lindas as que vocês fazem. :)
Esse foi um dos mais belos textos já produzidos aqui. Uma constelação de estrelas para você.
Obrigada por me ler e pela gentileza das suas palavras.
Eduardo... ‘ensaio de paraíso’ me soou tão bem... E de bondade tamanha : )
Obrigada por se aventurar nos meus escritos de coração aberto.
Juliêta... Uma constelação de estrelas pra NÓS... Para nos dependurarmos pra ver a vida espreguiçar.