SÍNDROME DO BOM MENINO
>> É do ar do pátio interno

Bom, é sábado à noite, eu já falei com a família ao telefone e assisti a um filme da década de 40, coisas que julgo relativamente ajuizadas. Neste momento, escrevo; antecipando o texto que só deveria escrever no domingo pela manhã. E eu realmente espero que, neste ajuizado sábado à noite, pelo menos esta crônica não tenha juízo nenhum. Porque ter juízo às vezes cansa. E hoje eu estou cansado.
Eu não lembro o que me aconteceu quando eu tinha 7 ou 8 anos, mas deve ter sido algo grande, amedrontador. Porque até essa idade eu era uma criança decididamente sem juízo, que tinha em seu respeitável histórico a deserção da escola — ainda no maternal —, a habilidade de pular para cima dos pára-choques (dane-se o novo acordo ortográfico!) dos carros em movimento e — pasmem! — o hábito de desejar sinceramente a morte de alguém que me contrariasse. Permitam-me — aliás permitam-me coisa nenhuma, fica bem melhor em inglês e eu não preciso pedir permissão para seu ninguém: I was really bad.
O medo mais antigo que eu lembro é de um disco do Carequinha. (Eu tinha pavor de palhaço; talvez até ainda tenha, porque os evito desde então.) Eu pensei que era a voz do Carequinha que me amedrontava. Mas hoje, agorinha mesmo, me ocorreu que talvez não fosse apenas a voz. A voz, falada, aparecia logo após a voz cantada na música "O bom menino", cuja letra é assim:
O bom menino não faz xixi na cama.
O bom menino não faz malcriação.
O bom menino vai sempre à escola
E na escola aprende sempre a lição
O bom menino respeita os mais velhos.
O bom menino não bate na irmãzinha.
Papai do céu protege o bom menino
Que obedece sempre, sempre a mamãezinha.
Por isso eu peço a todas as crianças
Preste atenção para o conselho que eu vou dar:
(FALADO) — Olha aqui. Carequinha não é amigo de criança que passa de noite da sua cama pra cama da mamãe. E também não é amigo de criança que rói unha e chupa chupeta. Tá certo ou não tá?
(RESPOSTA DAS CRIANÇAS) — Tááááááá!
E tem gente que acha que as crianças de hoje em dia estão expostas a muita violência ao ver televisão? Aquele disco de um supostamente ingênuo palhaço foi um presente de meus pais, e nada tinha me dado tanto medo antes na vida. Aquilo, sim, é que era violência: ter que ser um bom menino. Não poder dormir na cama da mãe, sentindo o cheirinho bom de seu lençol. Não poder chamar a irmã para brincar de boxe de vez em quando. Ter que tirar boas notas na escola... Quanta condenação para uma pobre criança. Quanto juízo! E eu aceitei tudo aquilo por medo. Medo de quê? Do Carequinha não ser meu amigo. Francamente...
Isso aconteceu há 30 anos. Eu estive, por 30 anos, inconsciente do que para mim era o ar que eu respirava: a incumbência de ser um bom menino, um destacado aluno, um prestativo rapaz, um compreensivo amigo, um respeitado profissional, um gentil amante, um encantador escritor... Chega, gente! Por um Quíron fazendo dupla quadratura com minha oposição Sol-Saturno, chega!
Eu quero a cama molhada de xixi (ou de esperma), eu quero aprontar com quem insiste em ligar errado para o meu telefone, eu quero gazear aula e esnobar o ensino do professor, eu quero ser atendido antes do idoso que tem mais saúde do que eu, eu quero dar um bom murro em quem merece (seja homem ou mulher), eu quero bater boca com Deus, eu quero ser do contra, eu quero o cheiro do lençol de minha mãe, eu quero roer a unha até o osso, eu quero fazer tudo errado. Tááááááááá?
Eu estou cansado de ser o poeta, o inteligente — o gênio até —, o delicado, o inspirado, o mestre, o guru, o determinado, o paciente, o pioneiro, o maravilhoso... Gente, eu só quero acordar todo dia sem despertador, fazer o que me der na telha o dia inteiro e à noite dormir aconchegado a uma mulher que me faça cafuné. Não há nada de extraordinário, admirável ou mesmo bondoso nisso. É preguiçoso, é egoísta e é explorador. É o que eu sou. Sem máscaras de palhaço.
E se houver algum leitor preocupado ou incomodado com tudo isso, well, eu fico feliz por ainda saber como escrever sem ter juízo.
Comentários
Depois de ler sua crônica fiquei pensando no que conto e canto pros meus filhos :)
Bjs,
Tia Monca
Grato pela observação, Marisa. Eu ainda não tinha visto por esse ângulo.
Sabe que eu me lembro desta música? Eu tinha pavor era do Bozo!! Lembra?
Fique com medo não, cArLa, que daqui a pouco eu me acalmo. :) Não acompanhei o Bozo, acho que porque sou um pouquinho mais velho que você. :) Mas ainda bem que alguém compartilha comigo o medo de palhaços. :)
Beijo
Adorei a crônica, especialmente pela reflexão sobre o Carequinha, que corresponde ao meu boi da cara preta. Também morria de medo dele e me odiava por - sim - ser uma menina que tinha medo de careta...
Ah, a propósito, acho que a minha opinião sobre essa sua escrita mais pessoal, está dada né?
beijos
O problema é termos a clareza de quem somos ou termos a coragem de nos enxergar quando temos essa clareza. Simples? Hã, hã!
Beijos, amigo.
"Se você quer parar de ler, o problema é seu.
Se você quer continuar lendo, a alegria é nossa.
LEITORES ANÔNIMOS (melhor dizendo, DECLARADOS"
:)
Ana, Ana... assim você está se tornando uma influência perigosa em minha vida. :) Sabe o que eu lembrei? O Carequinha parece que já faleceu. Acho que podemos sair à rua sem medo agora. :)
Maria, você é uma menina má. :) E uma excelente conselheira.
e da mesma forma, se libertou.
Definitivamente, ate hoje, acho essa umas das cantigas mais perversas.