A MANADA >> Ana Coutinho

Mulheres são os bichos mais coletivos que existem. Muito mais do que uma manada de búfalos ou do que uma passeata de pingüins, mulheres são ótimas em bandos e nunca consigo entender os que dizem o contrário.

Pensei nisso recentemente, quando eu e uma amiga resolvemos aproveitar uma liquidação. Ouvimos dizer de um bazar, a loja que amamos estava fazendo um megabazar, num megagalpão com tudo por – no máximo – 90 reais. Não precisamos perguntar se uma queria ir, não precisamos falar sobre horários ou logística, e não houve sequer um “se”. Assim que ouvimos a notícia, não precisávamos nos olhar para saber o que fazer. Eu peguei o guia no porta-luvas e comecei a procurar a rua. O lugar era longe e demoramos a chegar. Mas isso não era nada perto do que viria a seguir. Assim que nos aproximamos, percebemos uma fila de mulheres que se amontoavam em linha reta, recostadas em um muro, em pé, na calçada. Só poderia ser ali, claro. Estacionamos, entramos na fila e lá ficamos por um longo tempo. As mulheres, todas, falavam sobre o que haveria ali, do lado de dentro. Éramos crianças no portão da Disney, cada uma tinha uma notícia diferente para alarmar: “Nossa, minha prima tá lá dentro, disse que tem uma arara só de tricots?” Meu coração gelou: “Séééério?!”, gritei. “É, é verdade, tenho uma amiga que veio ontem e disse a mesma coisa. Mas ela ficou duas horas e meia pra pagar”, respondeu outra. Duas horas e meia me soou um pouco estranho, mas estava interessada nas nossas correspondentes, do lado de dentro. “Diz que vestido de festa está de 900 por 90 reais e as calças sociais de 300 por 30”. Engoli em seco, ficando na ponta do pé pra ver se enxergava o lado de dentro. “É tudo assim”, explicava uma adolescente, “eles tiraram os zeros e mantiveram o primeiro dígito. Minha cunhada é vendedora aí, e ela que me contou.” Entre uma notícia e outra, acompanhávamos as pessoas que saíam. Todas cheias de sacolas, nos sorriam animadas, algumas até davam tchauzinho enquanto tentávamos decifrar suas sacolas, suas expressões, seu olhar de satisfação ou não, como fazemos com os que saem do cinema antes de nós. Eles conhecem o futuro, são aqueles que sabem o que vamos sentir e viver, são o que seremos em algumas horas e isso lhes dá uma posição de estranha vantagem, além de nos invadir de ansiedade e pressa. Enfim, chegou a nossa vez. Já do lado de dentro, uma nova fila para preencher o cadastro da loja. Quem já tinha cadastro tinha que ir pra fila confirmar o cadastro. Tudo bem, já tínhamos uma vista panorâmica do paraíso e isso refrescava a nossa condição. Ainda tivemos tempo de armar uma estratégia. Minha amiga me olhou e disse: “Você vai pra direita e eu pra esquerda.” Ok, respondi. “E tudo o que você gostar pega dois que eu posso querer.” Ok. "Você foca em roupa de festa e eu no dia a dia, pode ser?". Está bem, eu confirmei. “Você vai de metralhadora e eu de pistola automática, tudo bem?” Brinquei, encerrando a conversa, e correndo pra dentro do espaço.

Foi então que bateu uma decepção inicial. Espalhadas em um enorme galpão, todas as roupas que ninguém quis no último ano – que é tempo à beça pra vender o que quer que seja. Ainda assim, havia um estranho feitiço pelo qual estávamos todas alucinadas. Cada uma pegava três peças de uma vez, jogava uma de volta, corria pra arara seguinte, se impressionava com o preço e assim ia. Até que descobriam que o lugar não teria provador e, antes mesmo de fazerem uma cara triste, notavam um grupo fazendo cabaninha para uma moça. Mais adiante, uma se escondia, só de calcinha e sutiã, atrás dos vestidos de festa. E, lá no fundo, depois de atravessar todo o espaço, dezenas de mulheres nuas, se trocando aos olhos dos seguranças do lugar, e de alguns poucos maridos, que tinham ido fazer não sei o que ali. Era impressionante, mas, ao mesmo tempo, era contagioso. Eu hesitei um instante antes de tirar a blusa pra provar um tricot, mas o segurança que estava ao lado fez um sinal de positivo com a cabeça, dizendo: “Não tem problema. Estou aqui há oito horas, já me acostumei.” Olhei para as outras mulheres, de calcinha e sutiã, e disse para ele: “Mas qual o problema? É tudo biquíni, estamos todas de biquíni, não é?”. Ele riu e, antes de responder, eu complementei: “Aliás você pode não saber, mas somos todas homens. Desencane.” Ele – e elas – riram e começamos a provar as coisas. Provamos as nossas, as das outras mulheres, e as que encontramos no chão. Se o segurança tirasse o paletó, eu iria provar. Todas faziam esse ciclo. Experimentavam as que escolheram, as que as outras escolheram, as que encontravam, e até o casaco que eu tinha vestido de manhã entrou na roda uma hora, ao que eu tive que gritar: “Ei, ei, ei, esse não, esse é meu” e a mocinha ainda me respondeu: “Xi, já vi umas três experimentarem, é uma graça”. Os seguranças opinavam, riam, até indicavam uma ou outra peça, quando se sentiam mais à vontade. Passaram-se horas quando decidimos que era hora de irmos embora e resolvemos olhar a fila do caixa. Uma onda de desânimo me abateu. Não pode ser, eu pensei. Nem nos piores dias de Hopi Hari ou Playcenter – já que eu estava na minha Disney – eu tinha visto coisa igual. Nunca, nunca. A fila dava voltas e mais voltas, e as mulheres lá, com as suas sacolas lotadas de roupa no chão, recostadas sobre seus pés. Andavam dois passos carregando as sacolas, voltavam a colocá-las no chão. Algumas reviam as roupas, olhavam bem, pediam opinião a outra e as penduravam ao lado, naqueles elásticos pretos que organizavam a fila. Ainda assim, ainda com essa cena de terror, ninguém fez nenhuma pergunta. Nos dirigimos à fila, caladas, prostradas, como se não nos restasse opção.

Foi lá, nas duas horas e tanto de fila que tudo isso me veio à cabeça. Observei alguns poucos homens aterrorizados. Outros prostrados. Um assustado com a esposa que insistia em que ele subisse o zíper da blusa que ela vestira sobre a própria roupa, tornando inviável que o botão fechasse, mas ela insistia, enérgica: “Vai, amor. Sobe, pô!”. Ele tentava responder, mas não conseguia, estava até suando, o pobre, tamanha força e – talvez – pavor. Até tentou reclamar, meio que sem graça, meio que bravo, meio que bocó, enquanto tentava atender o pedido da mulher. Os homens, esses tolos, nunca seriam capazes de um movimento tão insano quanto esse. É insano, é enlouquecedor, mas é o que somos. Pensei em Hitler e em como ele foi bom para atrair multidões a fazerem coisas absurdas. Procurei-o por ali, porque éramos todas súditas de uma louca e impiedosa lei, que não sei bem o que diz, ou o que prega, mas que nos faz assim, esse movimento estranho de termos que fazer o que todo mundo ali está fazendo. É como se um inconsciente coletivo nos movesse, ou algum movimento de imitação mesmo, como sugeriu minha amiga, quando tentávamos refletir sobre o que acontecia naquele ambiente, quando tentávamos, em vão, adquirir uma gota de consciência em meio a búfalos que apenas seguem uma manada. Foi a passos de tartaruga que chegamos ao caixa, e qual não foi a nossa surpresa ao notarmos que o sapato que levávamos não tinha o seu par. Era apenas um pé, o outro era outro número e não nos serviria de nada. Ela, minha brava companheira, coitada, fez uma expressão de horror quando se deu conta. Era quase que a sua única peça aquele sapato, e não tínhamos enfrentado tudo aquilo pra morrer na praia. Foi um movimento conjunto. Imploramos pra vendedora nos dar alguns minutos e seguimos, um sapato numa mão e a outra se agitando ao tirar tudo da frente em busca do outro par. Perguntávamos sem parar se alguém vira e, em meio a esse movimento quase que autista, uma moça que limpava o lugar nos interrompeu, calmamente, mostrando o pé que precisávamos ali, na sua mão, ao lado da vassoura. Ok, não era exatamente o mesmo número. Um era 38 e o outro 39, mas minha amiga jura que tem mesmo um pé maior do que o outro e corremos pra voltar na caixa, que nos recebeu sorridente.

Quando saímos dali, horas e horas depois de entrarmos, com as mãos cheias de sacolas e os pés latejando de dor, ambas, de novo sem falarmos nada, soltamos um suspiro abafado. Eu cheguei a gritar de alívio. Dei um berro de catarse enquanto atravessava a rua. Era como se tivéssemos saído da prisão, mas quem nos condenou àquela detenção não foi ninguém senão nós mesmas. Loucas, contagiadas, inebriadas, mulheres. Não está certo, no entanto foi isso que me fez pensar que ninguém – ninguém mais – poderia mover o mundo, fazer a economia girar, gerar frutos, filhos, dinheiro, alegria, poder e pavor para todo um planeta senão nós mulheres. Ainda que tenhamos um pé maior do que o outro.

Comentários

Ana, deu pra sentir daqui o rumor dos passos pesados da manada. A terra tremeu. Até me assustei. Que homens corajosos esses que encararam a manada em sua fúria. Ah, e ainda senti uma pontinha de inveja do segurança. :)
Unknown disse…
HAHAHAHAHAHAHA!!!!
Que loucaaaaa! Amo liquidação, mas não enfrentaria isso de jeito nenhum! Parabéns!
E como toda mulher, fiquei curiosa pra saber que bazar foi esse...

Beijos
Ai, Ana,
Vc é incrível! Valha-me... :)
Concordo com tudo e esse final foi ótimo. Pessoalmente, eu não sou consumista, nem percebo as liquidações - só compro mesmo coisas que gosto e preciso - mas sei como isso funciona. A a lembrança de Hitler foi perfeita: a mente humana é sensível demais ao inconsciente coletivo e leva as pessoas à uma loucura íntima e pessoal. :)
Beijo e saudade, sempre.

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