HOMERO >> JANDER MINESSO

 

Homero ganhava a vida fritando pastéis. Porém, não era mais um pasteleiro. Era um fritador de pastéis.

Quando criança, mostrava uma aptidão rara para a cozinha. Descobriu seu talento numa atividade da pré-escola, quando preparou um pastel que ficou uma delícia. Claro que ainda lhe faltava a experiência, mas todo o resto estava ali: a minúcia na escolha dos ingredientes; a precisão ao rechear e fechar a massa; a sensibilidade para tirar a iguaria do tacho no momento certo. Tudo isso resultava numa obra-prima sequinha e crocante. Uma Madonna de Munch gastronômica.

A família nunca soube lidar com tamanha virtude. Questionados pelos vizinhos, os pais diziam que o dom do primogênito não era nada demais. Assim, o menino cresceu descrente da própria habilidade. Mesmo que almoçassem pastel todo domingo — e ainda que a mãe confiasse a ele todas as etapas do preparo da refeição — o pequeno acreditava que qualquer vira-lata treinado era capaz de fazer aquilo.

Às quintas, acontecia a feira na rua de casa. Era comum que o garoto acompanhasse a mãe, sob o pretexto de ajudar com as compras, apenas para ficar de olho na barraca do Seu Hiroshi. Atento, o pivete logo pegou as manhas e trejeitos de Hélio, o piloto oficial do tacho de óleo. Essa foi a escola de Homerinho. E mesmo que o jovem nem desconfiasse, a prova final estava chegando.

Numa quinta-feira tão banal quanto as outras, Hélio teve um mal súbito no exato momento em que Homero encostava na barraca e pedia um de queijo para viagem. Seu Hiroshi, que passava pela feira na hora, apelou:

– Moleque: sua mãe falou que você sabe fritar pastel. Assume o tacho e te pago a diária.

Num misto de pânico e orgulho, o garoto aceitou. Se a mãe tinha comentado aquilo com Seu Hiroshi, talvez ele não fosse tão ruim assim. Mais contente do que preocupado, botou o avental branco, as luvas e já mandou dois de carne para dentro do óleo, porque a clientela estava esperando.

As filas na barraca começaram a crescer. Talvez o poder aquisitivo do pessoal estivesse aumentando. Talvez o pastel tivesse virado moda, como a paleta mexicana e o pistache. Na cabeça de Homero, poderia ser qualquer coisa, menos sua capacidade de transmutar uma fritura em arte. A Prefeitura chegou a aprovar uma lei obrigando a barraca a fechar uma hora antes, porque as filas davam voltas no quarteirão e transformavam o trânsito, que já era ruim, num pesadelo.

A essa altura, talvez estejam todos esperando um final feliz. Sinto decepcionar. Anos depois, Homero continua fazendo a mesma coisa na mesma barraca. Só que a rotina esmagou seu brilho. A mesmice, o salário minguado, a pressa dos clientes e a insistência de Seu Hiroshi em dizer que a alta no movimento era mérito do time de marketing, tudo isso moeu a alma do rapaz feito cana. Hoje, ele é um avental e um par de braços marcados pelas queimaduras de óleo. O pasteleiro foi embora e deixou o fritador de pastéis no lugar. Mas dizem que é assim, mesmo.

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Comentários

Hermano disse…
Em algumas culturas ocidentais, existe um ditado que diz: "Fritar é refritar"
Anônimo disse…
E pensar que essa história nem seja sobre pastéis e sim sobre nosso trabalho no audiovisual. Perde-se o brilho e parece que qualquer vira-lata pode fazer e tudo pra já, feito pastel. Me sinto Homero as vezes, cheio das queimaduras e o tempo tá passando.
Anônimo disse…
E com Homero não deu nem tempo de dizer aquela velha frase: trabalhe com o que ama e nunca mais amará nada.
Nadia Coldebella disse…
É uma história difícil de comentar. O único brilho é o do reflexo do Homero no óleo. Esse é o poder do não reconhecimento.
Mas me pergunto, do jeito q Homero estava convencido de que o brilho era do outro, acreditaria se alguém dissesse que era dele?
Alfonsina disse…
Você contou a história de um jeito cativante. Fiquei mesmo decepcionada com o final, queria que Homero crescesse, fundasse a própria pastelaria, ganhasse reconhecimento. Virou um operário desvalorizado e desiludido… mas o final feliz teria tirado muito da capacidade de espelho da sua história, que transcende os pastéis. Parabéns.
Ana Raja disse…
A desvalorização do trabalhador. Quantas pessoas talentosas são sufocadas nos seus locais de trabalho . Belo texto, Jander!
Anônimo disse…
Alguém aí acorda esse Homero! Um dia alguém disse que ele era incrível fazendo pastel. Ele tá no mesmo lugar, fazendo a mesma coisa por anos e esperando de novo o dia em que alguém dirá que ele é incrível. O ego as vezes faz a gente estacionar.
Zoraya Cesar disse…
o mais triste, triste, triste, é q tudo começou na família...
Albir disse…
Como diria Bandeira, um Chef inteiro "que poderia ter sido e que não foi!"

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