UM ABRAÇO OU UMA CANÇÃO? >> Carla Dias >>


Não sabe dizer que dia é hoje, que já se vão alguns em que ele não sai de casa, não abre as janelas, não acende as luzes, não sai da cama, fala com ninguém. Sabe que é noite por conta dos sons que lhe chegam do lá fora, um silêncio rompido pela conversa animada de jovens que passam pela sua janela sem saberem que dentro dessa casa vive - como costuma dizer seu melhor amigo, quando lhe é permitido fazer visita - um homem esquisito, mas de esquisitices simpáticas.

A mãe o visita uma vez ao mês, que mora em cidade distante. Traz sempre o bolo preferido dele quando criança, sem compreender que o ele adulto se tornou intolerante ao doce. Para ela, adoçar a boca do filho é como abraçá-lo, que entre as esquisitices dele está a incapacidade de demonstrar afeto fisicamente. Nele tudo é à distância, mesmo quando inspira intimidade.

Não sabe se é segunda, terça ou quarta, mas está certo de que não pode ser quinta, já que esse é o dia em que aquele melhor amigo aparece para um breve bate-papo e para trazer notícias sobre o que acontece no mundo. Sem detalhes, apenas resumos nem sempre fiéis às histórias, que ele se aborrece fácil com as palavras faladas.

Aqueles que o conhecem superficialmente, dos jornais que ele não lê, dos programas de televisão que ele não assiste, do sucesso do qual ele não desfruta, não tardam a sucumbir ao contestar o que, ainda há pouco, era seu objeto de fascinação. Porque não basta apreciar, não mais. É preciso tocar, modificar, intervir, o que para ele soa como destrinchar sua existência. Sendo assim: não, obrigado.

A mãe, mesmo diante da seriedade e melancolia dele, sorri lindamente. Ele aprecia o que ela faz por ele, apesar das limitações físicas que o tempo já vivido concedeu a ela. Sorri lindamente, enquanto ele admira a leveza com a qual ela conta sobre os acontecimentos da família: sobrinho que nasceu, primo que foi para a faculdade, tio que descobriu traição de tia, festa de aniversário da irmã, briga boba com o tio. Aquelas pessoas que ele deveria conhecer, mas não pôde. Não do jeito que ela conhece. Para ele, são personagens de uma radionovela que ele acompanha.

Acha que sua mãe é uma pessoa emocionalmente generosa, o que desperta nele comoção e inveja.

O pai desistiu dele faz tempo, é como se não tivesse filho. Só que ele entende, porque são poucos os que suportam oferecer sem esperar nada em troca. E ele, filho de mãe que sorri lindamente, e de pai desertor, de amigo insistente na amizade, tem quase nada do que eles desejam para oferecer.

Quando a noite se torna silenciosa, daquele silêncio que nem jovens excitados com a vida podem quebrar, ele se levanta, acende o abajur da sala, acende incenso. Depois, toma um longo banho, come algo leve, enche a taça de vinho, anda pela casa, descalço, pensando, até se sentir pronto para iniciar uma jornada que, dependendo da emoção vigente, durará a noite inteira.

Senta-se ao piano, curva-se sobre ele e toca. Em algumas horas, nascerá outra canção do pianista e poeta, e ela irá se espalhar pelo mundo, como aconteceu com tantas outras. As pessoas irão chorar e rir ao escutá-la, e aprenderão a cantá-la, vão se perder na sua cadência. E um dos homens mais celebrados da música não lerá críticas sobre suas obras, não participará de entrevistas na televisão, não abrirá sua casa para apresentar ao mundo o onde sua mágica acontece. E por isso, até seus fãs mais fiéis irão odiá-lo durante algum tempo, talvez até a próxima canção conquistá-los.

Depois do feito, ele receberá o amigo com as novidades do mundo. Escutará sobre livros, assunto que o amigo adora e domina. Escutará sobre mulheres, assunto que o amigo adora e domina. Escutará sobre a vida que acontece lá fora, longe da capacidade do pianista e poeta de vivê-la em campo. Então, quando o amigo for embora, ele se deitará em sua cama e perderá a noção do tempo, a capacidade de observar a hora. Ruminará pensamentos, até que, mais uma vez, aconteça o silêncio que ninguém pode quebrar. Ele que é berço para a criação de mais uma obra daquele que acredita que o abraço deve ser como uma canção.




Imagem: Obra El Piano Velázquez © Pablo Picasso

Este texto faz parte do Crônica de um ontem. Foi publicado, originalmente, em 27 de agosto de 2014. Publicado no livro de contos O observador. Clique aqui para conhecê-lo.

Comentários

Luiz Silva disse…
Carla, você sempre surpreende. Só alguém com tamanha sensibilidade e sabedoria com as palavras, consegue fazer dessas "insignificâncias", essa grandiosidade.
branco disse…
de uns tempos pra cá, bem, as palavras ficaram um tanto banais, vulgarizadas, repetitivas, por este motivo, faço questão absoluta que se atenha aos tempos das palavras "verdadeiras ".....seu texto é belo como poucos e único no que transmite.
Carla Dias disse…
Luiz, obrigada, de coração, pela leitura e pelas suas palavras.

Branco, seu comentário me encheu de, dia desses, eu ser compreendida sem ter de me resumir. Obrigada!

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