ENTÃO, AFTER LIFE >> Carla Dias >>

After Life

A primeira vez que vi Ricky Gervais foi em O primeiro mentiroso (The Invention of Lying/2009). Gostei muito do filme sobre um roteirista que não deslanchou na carreira, que vivia em um mundo no qual todos diziam a verdade e decidiu usar a mentira a seu favor. 

Eu gosto do Ricky Gervais. Talvez você não goste e tudo bem. Pode ser que você tenha assistido ao Golden Globe deste ano e se incomodado muito com a despedida dele e tudo bem. Eu gosto do Ricky Gervais. Hoje, porém, quero me ater a uma das suas obras.

Eu me lembro de quando conheci uma figura muito interessante. Ele era casado com uma americana e vivia há muito tempo nos Estados Unidos. Algumas das pessoas que também o conheceram, naquele mesmo dia, estranhavam os comentários desconcertantes que ele oferecia, durante uma conversa, em um ambiente que tinha tudo para ser não menos do que agradável. Porém, ele estava sendo agradável, mas sem abrir mão daquilo que tantos apreciam nos seus conterrâneos: o humor britânico. A esposa dele, escolada naqueles olhares que se seguiam aos ditos do marido, logo resolvia a questão ao anunciar: ele é inglês.

O humor britânico sempre me atraiu pelo requinte do sarcasmo proferido, da ironia entregue de maneira direta, seca. Essa coisa de dizer o que as pessoas costumam apenas pensar, sem frenesi, em um tom polido que não condiz com o conteúdo da declaração. Experimente assistir a refilmagem americana de Morte no funeral (Death at a Funeral/2010), dirigido por Neil LaBute e com Chris Rock como protagonista. Depois, assista ao filme original, dirigido por Frank Oz, com Matthew Macfadyen.

Pense em Monty Python.

Ricky Gervais incomoda muita gente, inclusive algumas gentes bem graúdas. O Twitter é onde ele se sente em casa. Ele não se recusa a responder a críticas, e tenho achado bem difícil não entender as respostas dele. Acaba que só não as entende quem realmente não está a fim de entendê-las. 

O que ele conta sobre a dinâmica da vida no Twitter, aparece claramente em Humanity, um especial escrito e protagonizado pelo próprio. Neste show, Ricky fala sobre a opção de não ter filhos e como as pessoas se sentem insultadas com o que ele diz, como se fosse ofensa direta. 

Obviamente, acontece de ser dirigida a alguém. 

Assistindo Humanity, eu me senti meio culpada em alguns momentos, mas me dei conta de que não era pelo humor em si, porque eu caia na gargalhada, sem medo de ser feliz, quase em um prelúdio de catarse. Eu me sentia meio culpada - durante os segundos que antecediam a compreensão de que não era o caso - por causa dos temas, aqueles que vivemos tirando do alcance da possibilidade de não serem importantes para o outro como são importantes para nós. No final das contas, é mesmo sobre ser capaz de rir de si mesmo, o que ele deixa claro na última parte do especial.  

Então, After Life.

Tive de assistir a série em doses homeopáticas, mesmo com episódios e temporadas curtas. Criada, escrita, dirigida e protagonizada por Ricky Gervais, ela conta a história de Tony Johnson, chefe de reportagens de um jornal local. Após a morte da esposa, ele entra em depressão e pensa em suicídio, mas descarta a hipótese ao refletir que melhor mesmo seria encarar uma trajetória de punição ao mundo. Ele começa a se comportar de outra maneira, sendo muito aberto a respeito de tudo e com todos.

Então, entra no cenário o que nenhum de nós consegue controlar completamente: o outro. 

O humor está lá, contundente, sem medo de se apegar ao tema que seja. Prova disso são as histórias paralelas, dos entrevistados para matérias publicadas no jornal. 

After Life é um drama extremamente irônico, onde o sarcasmo tem acesso livre, e o humor é tão bem colocado, que leva o espectador a pensar que, sim, há humor em tudo, inclusive nas tragédias. Sabemos disso, mas a tendência é romantizar o que nos incomoda, para ver se lidamos melhor com o incômodo. Não que o humor descarte o sofrimento, pois o roteiro garante que ele esteja presente, oferecendo toda malemolência necessária para provocar gargalhadas diversas.

Tony está cercado por personagens fascinantes, apesar do gosto duvidoso de alguns para amantes e roupas ou a esquisitice meio agoniante de outras. Mas está tudo lá, cada um em seu planeta, buscando por se conectarem do jeito possível, o que, para a maioria das pessoas, pode parecer improvável, mas não é. 

After Life

O elenco da série é muito peculiar e pediria por um texto muito mais longo para abordar um a um. Mas não vou mentir: toda vez que Paul Keye entra em cena, encarnando o psiquiatra, é impossível evitar pensar: qual será a insanidade que ele dirá dessa vez? 

After Life aborda - com humor refinado, enredado por sarcasmo - a morte daquele que tem de tocar a vida na ausência de quem partiu. Quem passa a ser outro, por conta dessa ausência. No meio do caminho, questiona muito do que temos por certo, e, não raro, acerta a mão no questionamento. Ricky Gervais, no modo melancolia à mostra, conseguiu criar uma obra sarcasticamente delicada na sua abordagem sobre o quão insignificantes somos para nos qualificarmos mais importantes. Ao mesmo tempo, provoca o espectador a rir de si mesmo, fazendo com que ele se identifique com aqueles personagens com os quais jamais imaginaria ter qualquer coisa em comum. 

After Life é uma série que me leva para tantos lugares, que fica fácil rir e chorar ao mesmo tempo. Rir durante uma conversa entre duas pessoas visitando seus mortos, no cemitério. Chorar por conta daquela frase fantástica, de uma simplicidade imensa, colocada bem no meio de um diálogo completamente insano e flagelador.

Aí mora a delícia da crueza do humor, que é um despir-se diante de si. O tal rir de si mesmo.


After Life e Humanity são produções do Netflix. O primeiro mentiroso também
está disponível na plataforma.


carladias.com


Comentários

branco disse…
há muito não comento, mas, no entanto, nunca deixei de apreciar cada linha de suas crônicas. acabei virando um fã silencioso. mas ....,sempre tem um mas, enfim encontrei uma pessoa que tem o mesmo entendimento que eu deste tipo de humor, arte, ou seja lá o que for. se você estiver errada, também estarei. e errados, daremos risadas deste mundo tão certo. valeu.......
Zoraya Cesar disse…
Carla, saudades de suas dicas! Amo humor britânico e gosto mto do Ricky Gervais. Vou assistir!
Albir disse…
Como crítica, de cinema ou de música, você é igualmente poeta.
Carla Dias disse…
Branco, sempre tão bom ler seus comentários. Problema nenhum se ausentar deles, mas que fique registrado que sempre os levo em alta consideração. Beijos!

Zoraya, depois me diga o que achou. ;) Beijos!

Albir, no final das contas, a poesia é que me ajuda a enxergar a vida com a clareza necessária. Beijos!

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