DESPERTENCER >> Carla Dias >>


 Parto do princípio de que não pertenço.

Ao não pertencer, abro mão do currículo que temos de carregar, diariamente, como prova crucial de quem somos e onde podemos chegar. Mas não me iludo, sei que se trata de um ínfimo instante o experimentar desse desapego. Que provarei de goles dele, durante a vida, e que há um duro trabalho a ser feito para despertencer de vez.

Despertencer de quem seria, fosse o avesso de quem sou. Das branduras falseadas, que nada mais fazem do que perfumar a dor ferina dos desfechos. Esse desapego pelo certo, calculado, pelos calendários e feriados, pelas portas de entrada que são travadas, depois que nos engolem. As janelas voltadas ao horizonte, que enxergamos feito quadro, quando deveríamos pertencer à pintura.

Os temporais domesticados.

Muitas vezes, vestimo-nos com amarras, como se elas fossem redes capazes de nos livrar dos tombos, segurando-nos a poucos centímetros do chão. E então, passamos a viver assim, centímetros de distância nos separando da experiência de sentir das dores aos prazeres. A crueza afastada pelos panos finos que roçam nossa pele, disfarçados de conforto merecido, mas fazendo a vez de muros pessoais, íntimos.

Desaprendi a conjugar promessas, por isso não mais as pronuncio.

Desaprender é bem menos dolorido do que despertencer, porque, ao desaprender, destruímos preceitos incapazes de confortarem nossas solidões. Desenterramos pesares que se esvanecem, ao simples encontro com a nossa conscientização de que eles são dispensáveis. Desaprender nos permite viajar a sós e aceitar companhia no caminho. Olhar o mar de baixo para cima - do fundo para o raso infinito - e encontrar uma nova versão do céu. Um céu de liquidez apaziguadora.

Despertencer atiça os demônios particulares, convida-os à mesa, para jantar servido às pressas, que alimenta, quase que igualmente, a coragem e o temor por uma possível incapacidade de se desvencilhar dos rótulos, dos desafetos, das limitações. Mas também despe dos véus a capacidade de nos esvaziarmos da condição de aprisionados por nós mesmos, já que nos são oferecidas tais opções com clareza que não se alcança, quando lidamos somente com um lado de quem somos. Ao cultivarmos a possibilidade de não pertencermos, vemos a nós mesmos inteiros e podemos decidir o caminho a seguir.

Despertencer não significa se ausentar de tudo e de todos, mas se aproximar de si e de outros, sem desculpas, preceitos, manobras. Sem antever e definir. É a busca pela intimidade que não intimida, mas engrandece, renova afetos.

Ao despertencer, o silêncio me afaga os cabelos. A respiração é tão lenta, como se fizesse hora para não chegar adiantada ao destino. As cores bocejam uma preguiça mais lerda ainda, enquanto cada gesto tem o peso de todas as escolhas que já fiz nessa vida. E no momento mais terno desse despertar, sinto-me escorrendo pelas paredes, batucando nos telhados, abraçando prédios, pessoas, precipícios, estradas, campos. Derrubando cercas, rótulos, prisões...

Feito um temporal, que é impossível se domesticar.


Imagem: Perfect Storm / NASA

Este texto faz parte do projeto Crônica de um ontem. Foi publicado, originalmente, em 11 de fevereiro de 2009.

carladias.com


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