A FAXINA >> Albir José Inácio da Silva

 

- Por que o senhor demora tanto nesse piano? – perguntou a Condessa que por pouco não viu o teclado. Para disfarçar, Jovino ficou passando o pano na tampa que acabou de fechar.

 

- Já tô acabando, madame! – respondeu quando ela se afastou, mas não completou o suspiro de alívio porque o verniz da tampa tinha ficado no pano.

 

Até poucos minutos atrás tudo ia bem. Chegou a ligar pra namorada na hora do almoço:

  

- A patroa me chama de senhor - nunca ninguém me chamou de senhor - e desejou melhoras pra você. Quero fazer isso pelo resto da minha vida.

 

Valdeia ficou feliz pelo namorado. Ele era trabalhador, mas não dava sorte.  Jovino veio porque a coisa estava ruim lá em Minas. Não conseguia estudar, não arranjava emprego e se sentia culpado. Primeiro ele achou que era desinteligência, depois concluiu que era preguiçoso.  

 

Alguns amigos já estavam na faculdade e ele fazendo biscates. Resolveu vir pro Rio de Janeiro. A idéia era mudar de vida: trabalhar de dia e estudar à noite, lugar novo, gente nova, se esforçar, não precisaria mais ter vergonha de ninguém.

 

Mas aqui também as coisas não iam bem. Quando tinha trabalho, chegava em casa às nove da noite, depois de três horas de viagem e não podia estudar. E era uma sorte quando conseguia vaga como servente de pedreiro. Só não passou fome foi porque começou a namorar a Valdeia.

 

Valdeia era diarista e ganhava 180 reais por dia. Ou seja, ela podia ganhar por semana o que Jovino ganhava num mês virando concreto. Ela se dava ao luxo de rejeitar faxina se na primeira vez a patroa era desagradável. Quando saíam ela pagava a despesa e ele aceitava, mas com vergonha.

 

Após uma pequena obra, a Condessa precisou de alguém para limpeza pesada e Valdeia indicou o namorado. Durante a viagem de trem, Valdeia foi recomendando ao Jovino como deveria se comportar na casa da Condessa, que era muito distinta e muito Condessa.

 

- Não existe mais Condessa não, Valdeia!

 

- Mas ela é de sangue, Jovino. Esse negócio de sangue não acaba nunca – explicou a namorada.

 

O apartamento ocupava todo um andar e a sala pareceu a Jovino uma praça de alimentação de shopping. Havia mais duas criadas, uma ficava na cozinha e a outra que era uma espécie de aia e ficava andando atrás da Condessa, adivinhando o que ela queria e só não a abanava porque tinha ar condicionado.

 

O dia transcorreu sem incidentes. Jovino nunca viu uma limpeza pesada tão leve. Tirou uma terrinha, lavou uma parede e juntou o lixo que colocou na garagem do prédio. Depois continuou por ali alisando pra valorizar o dia de trabalho. A patroa ficou satisfeita, pagou o casal e sorriu.  Jovino tinha descoberto sua nova profissão.

 

Na véspera de voltar à casa da Condessa, Valdeia acordou com febre.  A UPA receitou 14 dias de isolamento, dipirona em caso de febre e retorno se a respiração piorar. Valdeia ligou para as patroas avisando. Quando ia ligar pra Condessa, Jovino sugeriu que ela o indicasse à madame para substituí-la.

 

A Condessa ponderou que ele era homem, mas Valdeia é boa de argumentos. Disse que hoje em dia muitos homens fazem faxina e Jovino é muito caprichoso. A Condessa aceitou, não era fácil mesmo conseguir serviçais, ainda mais agora com a pandemia. Pelo menos já conhecia o rapaz.

 

E assim Jovino era o mais feliz diarista. Pelo menos até se aproximar do piano.

 

(Continua em 15 dias)

 

Comentários

Sandra Modesto disse…
Ainda existem muitos casos assim. Nesse país com injustiça social. Estou ansiosa pra continuidade. Muito boa essa primeira parte.
branco disse…
no aguardo da próxima parte e econômico nos adjetivos resumo até aqui: nada menos que digno de seu talento.
Albir disse…
Obrigado, Sandra e Branco!
Sempre atenciosos!
Abraço!

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