PERDEU-SE? >> Carla Dias >>

Ele perdeu o trem e seu dia ficou desarranjado. Alguns palavrões depois, distraiu-se com a figura lúdica daquela senhora, a catadora de latinhas e afins, que desfilava pela plataforma, enfiada em trajes atassalhados. Como o difícil pode ser aprazível ao espírito que ainda visita memórias infantes? É que ela lembra a avó dele, geograficamente distante, mas sempre presente.

Ela perdeu a carteira e ganhou uma dor de cabeça oriunda da burocracia. A própria é uma burocrata de profissão, por isso evita ter de encarar o emaranhado disso e daquilo que a coisa provoca. Contudo, aconteceu. Ela esperava até pelo fim do mundo, mas não que tivesse de se submeter às filas e aos formulários destinados aos cidadãos comuns que se emaranham em burocracia de jeito tal que fica impossível desatar o nó.

Ela é cidadã comum, apenas se esqueceu disso. 

O menino perdeu o dente da frente e recebeu de volta as chacotas dos coleguinhas da escola. Também perdeu o desejo de ir para a escola e ganhou um dia de folga em casa, com direito ao colo da mãe e bolo de laranja. Amanhã, ele sabe que terá de voltar à realidade, mas sente que poderá com ela desta vez.

O menino perdeu o medo para conhecer a coragem.

A menina perdeu as estribeiras, sapateou, berrou e se cansou da própria espetaculosidade ao se dar conta de que não tinha espectadores e, dessa forma, era apenas desperdício de energia se alvoroçar toda. Perdeu também a paciência e saiu de casa, andando sem rumo. Nunca mais encontrou o caminho de volta.

Tem quem perdeu jogo de futebol, episódio final de série favorita, consulta, tempo. E aqueles que perderam dinheiro, fama, reputação, condicionamento físico, desejo.

Ele sabe que perder faz parte da rotina de todos. Perdeu, ainda hoje, um bilhete que guardava no bolso, um rabisco de uma frase boba, sobre coisa nenhuma, mas que guardava a letra dela, o tempo que ela dedicou a fazê-lo feliz, mesmo sem saber que era isso o que fazia. Aliás, não saber da felicidade que sua presença provocava nele era o que mais o encantava nela. 

Então, a vida perdeu a simplicidade e os modos.  

Perdeu a mão, ele diria.

Perdeu a cota de boa sorte dedicada a eles.

Ele perdeu o bilhete dela, aquele que leu e releu, que a cada leitura foi capaz de levá-lo a sentir o contentamento de conhecer alguém capaz de fazê-lo pensar além, melhor, mesmo quando não era possível melhorar a situação, mas sim importante esclarecê-la. Bilhete que faz presença perdurar, até mesmo na ausência.

Também a perdeu, quando um estranho qualquer perdeu a cabeça.

O que você perdeu hoje?  

O que encontrou?


Imagem: Passage d'une Ame © Odilon Redon


carladias.com

Comentários

Sandra Modesto disse…
Eu me perdi na lucidez e me embriaguei lendo o texto. Deu vontade de nunca mais parar de ler tudo isso. Hj eu ganhei meu dia. Lindo texto.
Anônimo disse…
"Eu me perdi na lucidez e me embriaguei lendo o texto. Deu vontade de nunca mais parar de ler tudo isso. Hj eu ganhei meu dia. Lindo texto."

Foi isso aí em cima que a Sandra Modesto disse e, eu, assino em baixo. Na verdade não perdi, ganhei. Valeu, Carla Dias!

abraços

Enio.
branco disse…
perdi a noção do espaço/tempo. encontrei mais uma narrativa cravejada em preciosidades.
Fred Fogaça disse…
Vai ter sempre o que perder é a gente que ainda se surpreende, as vezes.
Albir disse…
O seu texto compensa as perdas que eventualmente eu tive.
Cristiana Moura disse…
Tem uma perda que não vou contar, coisas do coração. Que já perdi, no entanto, mora na minha cama a presença da ausênciae, desta forma, perco todos os dias, a mesma perda. QUe texto!!!
Carla Dias disse…
Sandra e Enio, perder-se para encontrar-se é exercício que me cabe. Vejo nele uma riqueza imensa de aprendizado.

Branco, obrigada, de coração.

Fred, perdemos constantemente. Melhor aprendermos que certas perdas são ganhos.

Cris, perder todos os dias a mesma perda é jornada de solidão gritante. Espero que, dia deses, a solidão amenize e a perda se torne um sopro.

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