ESQUECÍVEL >> Carla Dias >>


Das coisas mundanas: pés rastejando em parede. Passos lentos, de levar a lugar nenhum. Pés tateando a pele desbotada da parede que está lá há mais de uma vida de alguém que ela não sabe quem, mas existiu. Pensa até em se dedicar a encontrar o ex-dono dessa parede na qual seus pés dançam, desajeitadamente, enquanto o corpo jaz em um colchão vencido - de prejudicar coluna -, sobre um cobertor herdado de alguém, de quem não se lembra bem.

Pergunta-se, na mudez de um pensamento disperso: qual será a história dele? Do dono das paredes de antes de a casa se tornar seu refúgio.

Cultiva agrado sem fronteiras pelos contadores de histórias, principalmente dos que nunca transformaram tal talento em profissão, porque o pouco de ficção que se envolve com a realidade deles não a muda, apenas a torna mais palatável.

Sente por eles um afeto melancólico, porque lhe faz bem escutá-los a tecer suas tramas, apesar de, quase sem pausa, a dor ser a responsável pelos pontos de virada. Ela sente a dor deles, como se, ao escutá-los em suas trajetórias, ela vivesse o que eles já viveram, lidasse com o que eles enfrentaram ou apenas colocaram em um canto dentro deles, aquele lugar que nunca visitavam, torcendo para que, um dia, a desolação desaparecesse. 

Não é injusta com as tramas pessoais dos outros. Também delas aproveita o aprazimento, os desejos dignos da extravagância que é a felicidade.

Não se alimenta da devassa tristeza deles, trata-se de compartilhamento. Porque deseja aos contadores de histórias enredos originais. Deseja que eles se aprumem e vivam experiências nas quais a sabedoria os auxilie a lidar com a dor e o contentamento, pois ambos são desafiadores e ensinam somente aos que estão dispostos a vivê-los sem reservas. Deseja que, feito ela, um dia eles se permitam mergulhar na realidade do outro, como se a vestisse.

Pensa que vestir a realidade do outro é de amplificar sentimentos, os mais desastrados e gritantes. Dos que merecem acontecer até alcançarem a graciosidade de se tornarem prediletos.

Lembra-se de ter lido algo sobre desejar ao outro a felicidade. Não sabe dizer quantas vezes foi espectadora do contrário dessa possibilidade. É algo comum e ela acredita que infelizmente. Questiona-se, a fim de manter a sanidade: nada é inteiro, certo? Tampouco alguém. Todos têm algo que é falta e jamais conhecerão. Viverão essa falta, como se ela fosse um sabor que sentem, mas que é único, não há como compará-lo.

É de machucar ou curar?

Vezes um, para outras, coisa outra.

Ela tem esses desejos que não verbaliza, porque sabe que são cruelmente deleitáveis e profundamente improváveis. Porém, não consegue abandoná-los. Rumina-os, durante o dia, enquanto preenche formulários, etiqueta envelopes, escuta conversas que não a interessam, mas que servem para preencher aquele tempo. Acontece de ela se sentir envergonhada, tamanho desapego com o momento que ela alcança ao se render a esses pensamentos.

Então, tranca a porta de casa e se desfaz das reservas.

Pés a sambarem desabafos na parede de antes de ela estar ali. Ela que conheceu poucos cenários, mas se embrenhou em muitos dos imaginados. Que vem sofrendo de insônia anárquica, das que brincam de fazer sanidade enlouquecer só para zombar daquela que disse, batendo no peito, armada com tola certeza: eu sei que isso é o certo a ser feito.

Escutou alguém dizer, em uma das viagens de ônibus que enfrentou, que para compor canções melancólicas: acorde menor. Acordou-se para essa percepção. Embora não seja apta a definir musicalmente o dito – o homem do ônibus parecia conhecer bem o assunto –, desliza os pés suavemente pela parede, tentando tocar a canção mais melancólica que aquele concreto possa ter hospedado, com suas camadas de reboco desafinado e tintas de mil tons.

Foi além e se imaginou capaz de não apenas escutar tal canção, mas também de interpretá-la, valendo-se do talento de tocar um instrumento, como os tocavam os integrantes das suas orquestras imaginárias, pessoas tão capazes na sua ignorância, apaixonados por aquela música de entristecer felicidade. Alegrar melancolia.

Há dias em que dentro dela o mundo faz muito mais sentido. 

Ela faz mais sentido.

Em meio ao tudo que em seu dentro vive, e não se presta ao esquecimento, ela se torna esquecível. Feito melancolia às voltas com um acorde menor, em meio a tambores celebrando o carnaval, na avenida. 

Acha a própria insignificância de uma coragem singela de se expressar em silêncio.

Imagem: Madame Suggia © Augustus John
Guilhermina Suggia foi uma violoncelista portuguesa.




Comentários

Zoraya Cesar disse…
"Todos têm algo que é falta e jamais conhecerão. Viverão essa falta, como se ela fosse um sabor que sentem, mas que é único, não há como compará-lo."
Belo texto, Carla,de uma tristeza ímpar em sutileza. às vezes tenho a impressão que seus personagens se desvaneceriam no ar, assustados por um vento mais forte.
Albir disse…
Acho que somos todos personagens de Carla Dias. Só não sei como ela sabe de coisas que não contamos a ninguém.
Carla Dias disse…
Zoraya e Albir, agradeço o carinho que oferecem aos meus personagens. Eles também agradecem. Beijos.

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