CRUZAMENTO >> Carla Dias >>


Neste cruzamento repousam muitas histórias frequentadoras de boletins de ocorrência. Histórias de desde antes dele. São décadas de acumulação de tragédias. 

Os transeuntes nem prestam mais atenção às vítimas geradas neste cruzamento, o que dirá daqueles que deveriam dar fim ao problema. Há pessoas que seguem, como se nada tivesse acontecido, depois de presenciarem uma dessas tragédias: cena de horror e sonoplastia das indecorosas. Como alguém pode ficar indiferente ao som de um corpo atingido por um carro? Show da realidade que não interessa a quem deveria interessar.

Um frio na espinha o levou a evitar este cruzamento durante toda a vida. Mas hoje, decidiu cortar caminho, apressado que estava para voltar para casa, antes que começasse o futebol. 

Alguém para ao lado dele, respira fundo, enquanto o motorista do carro grita por socorro. Ele balança a cabeça e diz: sinto muito, e parte como se nada tivesse acontecido. Ele sempre achou estranha a maneira como as pessoas agem ao se acostumarem às tragédias. Evitou este cruzamento durante uma vida para não se tornar uma dessas pessoas que não reagem ao absurdo.

Sabe que não foi dos homens mais gentis, tampouco detentor de muitos predicados a serem apreciados. Não tem medo de prestar contas ao Deus ou ao diabo, mas lamenta não ter tempo de se entender com a filha.

Enquanto a respiração vai rareando, ele escuta um fervoroso grito de gol. Antes de partir de vez, engasga em grito o desejo urgente de saber se fora seu time o autor do tal.

Seu último pensamento é um belo xingamento. Quem diria que, justo hoje, ele se tornaria mais um em lista de vítimas.

Gol... Gol do cruzamento.

Imagem: Tentacles of Memory © Mark Rothko

carladias.com


Comentários

branco disse…
Ironia suprema. Belo !
Anônimo disse…
Muito bom, adorei.
Carla Dias disse…
Obrigada, Branco!

Obrigada, Anônimo. ;)
Zoraya Cesar disse…
Que diferente esse,Carla. E,ainda assim, surpreendente,como sempre!
Carla Dias disse…
Pois é, Zoraya, essa coisa de sair da linha, vez ou outra, pra ver como me sinto. :)
Albir disse…
Achou que se protegia ignorando a tragédia do outro e achou a sua própria.
Carla Dias disse…
É, Albir, ignorar não é uma boa saída, né?

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