SOMOS, NÃO SOMOS? >> Albir José Inácio da Silva
- Boas notas qualquer um tira. Tô
falando é de argumentação, de originalidade, de confrontar professores, livros
e escolas com partido. Isso é que faz a diferença do menino.
No melhor estilo coruja,
jactava-se o Tom – como preferia ser chamado o Antônio – do brilhantismo
escolar do seu rebento Bill – como preferia que chamassem o Abílio.
Vermelho já, por causa do sol da
manhã de domingo no balcão do bar e das cervejas que se sucediam, o orgulhoso
pai não poupava ninguém.
Os amigos se perguntavam se
deviam defender seus próprios rebentos ou ignorar as bravatas. Mas já estavam
acostumados. Era assim o Tom, sempre
dono da verdade, falando alto e pai do melhor e mais genial de todos os filhos.
E prosseguia:
- A maioria dessa garotada, mesmo
os estudiosos, não passa de massa de manobra, concordante e bovina, que engole
o que lhes é empurrado goela abaixo. Mas não o Bill!
Bill, acreditava, tinha outra
têmpera, a do pai, a do avô. Tom se lembrava do seu velho desconfiando de tudo
que lhe diziam ou mesmo mostravam na televisão.
- Quem garante que essa história
de pisar na lua não foi filmada numa noite clara da caatinga? – desafiava.
E foi com esses pensamentos,
alguns próprios outros herdados, que a vida de Tom prosseguiu. Vida dura,
trabalhando todos os dias no pequeno comércio de ferragens, sem tempo para
estudos, aturando idiotas que arrotavam certezas que ele não podia contestar pra
não desagradar o freguês, embora não lhe faltassem argumentos.
Argumentos não da escola, onde
foi muito pouco, mas da razão e da mente privilegiada que acreditava ter. E com
Bill seria diferente. O ENEM se aproximava e Tom já o tinha desobrigado de
ajudar na loja. Dedicação exclusiva ao estudo. Não havia como dar errado.
Tom tinha sentimentos
conflituosos de amor e ódio com a escola. Se era lá que se transmitiam as
heresias mentirosas, conspiratórias e partidárias, era lá também que seu filho
desvendaria e defenderia as verdades que o ensino de hoje tentava esconder.
A estratégia era atacar de dentro
e Bill seria esse agente. Uma vez tentou desmascarar uma professora que ensinava
lá suas mentiras sobre evolução, big-bang, heliocentrismo e outras heresias, mandando
que Bill gravasse a aula com o celular. Mas o diretor nem o recebeu quando soube
do assunto. E Tom desistiu porque é um homem de debates, não de brigas. Isso daí
tem que mudar, pensou.
No início do ensino médio, os
professores até achavam interessante a maneira aguerrida com que Bill desacreditava
de informações históricas e científicas consagradas. Depois foram perdendo a
paciência: “tá bom, fique com suas ideias, mas se botar isso na prova te dou
zero”. E mais não diziam porque já ganham pouco, tem aluno que ameaça e agride,
e um espiritozinho obsessor sai na urina.
Tom não se incomoda com esse isolamento
de Bill, talvez até se orgulhe. Só o preocupa saber que os gênios sofrem muito com
as incompreensões e invejas dos comuns.
Chegou o dia da prova e, se havia
algum nervosismo, também havia confiança. Nervosismo dele, pai, o garoto estava
tranquilo. E continuou assim depois das provas. Tom não quis apoquentá-lo com
perguntas, confiava no seu taco.
Soube pela imprensa o tema da
redação: “Hemisférios norte e sul, o mapa das desigualdades”. Lembrou-se do filho
estudando História, Geografia, e felicitou-se pelos livros que lhe custaram
muitas horas de trabalho.
Vieram as festas de fim de ano e Tom
foi discreto apesar da vontade de comemorar a plenos pulmões a vitória.
Aguardaria o resultado.
Com sinais bem claros de infarto,
depois de saber que Bill zerou a redação, Tom perguntou num gemido:
- O que foi isso, Abílio? Você não
estudou?
- Estudar, eu estudei, pai! Mas “hemisférios”?
A gente é terraplanista, né?
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