O AMOR DE JORCIVAL >> Zoraya Cesar

Viera do interior de Minas, naquela época em que as malas não tinham rodinhas, em que capiau tinha cara e porte de capiau, mas que gente de pouco estudo, desde que trabalhadora, tinha alguma chance de subir na vida. 

Viera sem grandes ambições, não almejava riqueza, festas, luxos; só queria duas coisas: olhar para o infinito e ganhar a vida honestamente. O combinado era morar na Rua do Riachuelo, com um primo, que lhe havia arrumado um emprego de vendedor em loja de sapatos femininos. “Só tem mulherão, primo, é trabalho de primeira, o dia inteiro tocando o pé delas sem marido empombar”, dizia o tal primo, entusiasmado. Jorcival até gostou da ideia.

No primeiro final de semana, porém, os dois rapazes foram passear à beira-mar do cartão postal mais famoso da cidade. O recém-chegado ficou embasbacado. Nunca vira nada tão lindo. As calçadas, com suas pedras portuguesas desenhando linhas sinuosas, lembravam-lhe as curvas do corpo feminino, e eram, certamente inspiradas nas Certinhas do Lalau. A orla lhe pareceu ter vida própria, e nem mesmo o céu límpido de sua terra era tão bonito quanto aquele. Disse-lhe o primo que aquela região tinha o apelido de ‘princesinha’, e, nesse momento, Jorcival caiu, irremediavelmente, de amores. Nunca mais poderia viver longe daquele bairro, daquele lugar. 

Foi, portanto, para espanto do primo, que trocou o emprego na sapataria por um de porteiro, em um prédio na Av. Atlântica. Antes de começar o expediente, todos os dias, amanhecia junto aos pescadores, ajudando a puxar a trama de cordas repleta de peixes. Ao final do dia, sua rotina era molhar os pés na água salgada, estudando as marés, sentindo no corpo as variações do tempo, do vento, da vida. 

Eram bons tempos aqueles, em que um trabalhador conseguia economizar e até comprar um conjugado em um prédio de muitos apartamentos, a quatro quadras do litoral que, havia muitos anos, enchera seus olhos e seu coração. Depois que se aposentou, arranjou trabalho na banca de jornais de um amigo, um luxo, bem na esquina da sua princesinha, era só esticar o pescoço e olha ela lá! Linda, linda, mesmo depois daquela obra sem sentido que fizera do areal um deserto. 

O trabalho mudou, mas a rotina continuou a mesma, durante anos, anos. Nos últimos tempos, porém, já não caminhava toda a extensão da orla; fechava a banca, pegava uma cadeira — dessas modernas, leves, de alumínio — e sentava-se às margens, apreciando o dançar dos últimos raios solares e o surgimento das primeiras luzes — dos postes, dos apartamentos, das estrelas. Jorcival dizia que só começara a viver no dia em que pusera os olhos e os pés naquele lugar abençoado, e era ali que queria morrer. 

Uma dessas noites, Yemanjá, que ouve todas as preces daqueles que amam a sua morada, pediu a Yansã que soprasse uma brisa fresca e cantante nos ouvidos do velho homem, e fechou seus olhos com maresia amorosa. Aos poucos, o som das vagas foi diminuindo, e, com elas, as batidas do coração de Jorcival. 

A Rainha do Mar o recebeu em seus braços maternais, Jorcival feliz, pois não teria desejado nada diferente.




Comentários

Albir disse…
A princesinha do mar é paixão para toda a vida, né, Zoraya?
Albir disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Zoraya disse…
E não é, Albir?
Quanta gentileza de um autor para com o personagem, Zoraya!
André Rabelo disse…
Adorei o texto. Obrigado por partilha-lo Zoraya.
André Rabelo
Zoraya Cesar disse…
Eduardo, Andre, mil obrigadas! Beijos de quebra-mar
como assim eu ainda não tinha visto essa?

poesia de amores sem fim e ondas salgadas, temos sempre lugar nos braços da mãe!

Feliz Ano Novo, querida, Zô! vamos no embalo das ondas de prata! beijo
Unknown disse…
Que conto delicioso!! Gostei da suavidade com que narrou a vida de tantos imigrantes da ali chegam!!
Anônimo disse…
Jorcival, afinal, casou com uma princesa! E foi feliz para sempre...
Erica disse…
so sweet....
:-)
Anônimo disse…
Que linda!
Uma declaração de amor à Copacabana.
Se tiver algum concurso sobre a Princesinha, inscreve essa!
Beijocas, querida amiga.Pat Rochinha

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