— O tempo é um rio que corre... Curiosa, o chá ainda quente sobre a mesa, ela se levanta. Na pequena estante tomada por livros e fotografias, por rios que já correram, ela apanha o livro. Examina-o com cuidado: — Não me lembro desse. Retorna à mesa para terminar o chá, trazendo nas mãos aquilo que julga ser uma preciosidade, pois conhece a autora. Dá uma pausa na aula que prepara para a faculdade, põe-se a folheá-lo. — Que interessante... Aos 51, ela pensa, o tempo parece ser mesmo um rio que corre, e rápido. Lá atrás, talvez estivesse mais para um lago, de águas claras e calmas. Se bem que mesmo que fosse um rio, não havia motivos para preocupação; a intensidade da vida não permitia. Mas agora... — Olha o que eu trouxe. Ela se volta para o marido que acessou a sala trazendo barulho e um perfume novo. — Comprei no mercado. Estavam muito bonitos; não resisti. Vermelhinhos, os cajus brilhavam como ouro. — Você não quer? Eu vou chupar. — Depois. Preciso terminar a aula. A pro
Se estivesse atento ao entorno como normalmente estou; se estivesse atento como normalmente estou num lugar aberto como aquele; se estivesse atento aos movimentos que estavam sendo costurados, eu perceberia. Eu perceberia fácil, fácil os movimentos nos olhares, no andar, nos agrupamentos, na conversa amiúde. Eu faria a leitura óbvia, meio assim: olha, cuidado! Não cheira bem. Presta atenção: tá na cara que estão tramando, fica esperto, meu camarada. E é com você, entendeu? Se for o caso, pegue as suas coisas e vaza, vaza rapidinho. Era fácil perceber, afinal, tão comuns eram eles, e não estavam nem um pouco interessados em eclipsar os movimentos, os filhos da puta estavam armando na minha cara. Ocorre que o tonto aqui tinha a visão túrbida, e ela se fizera túrbida de repente, como se para eles eu estivesse a usar óculos com lentes inadequadas para a minha necessidade de visão. Meu campo de visão se embaçara de repente — essas coisas acontecem de repente. Meu campo de visão se embaç
- Quem escreveu isto? - perguntou a diretora, mais séria que de costume, olhando para os quatro suspeitos. Os quatro eram os alunos de melhores notas, que tinham direito a sentar nas carteiras duplas em frente à professora. Naquele mês, Silvinha, primeira colocada, sentava-se à esquerda. Celinha, segunda melhor nota, ao seu lado. Na carteira de trás estávamos eu e Hilda, como terceiro e quarto lugares respectivamente. Eu estava entre os quatro por razões político-econômico-administrativo-pedagógico-aleatórias. E era, por isso, um garoto de muita sorte. Cheguei mesmo a ouvir de Dona Creusa - um misto de servente, inspetora e fofoqueira: - Esse menino dá muita sorte nas provas. Está sempre nas primeiras carteiras! É que as escolas públicas não comportavam todos os alunos e o governo dava bolsas de estudo em escolas particulares. Eram os bolsistas. E foi assim que eu fui parar numa escola, não digo de classe média, era um bairro pobre, mas que tinha alunos de
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larga a casa, abre as asas,
garbosa crisálida."
(Mariza Viana)