ENREDADOR >> Carla Dias >>


Nasceu...

Então?

Escreveu muitas histórias, assim, vivendo cada uma delas, nem todas por gosto. Descobriu-se autor de apenas parte de sua vida, que a outra se esbarra frequentemente às escolhas de outros. Vem exercitando a capacidade de lidar graciosamente com essas escolhas que têm o poder de modificar o desfecho das suas próprias, tentando minimizar o poder delas de afetar sua biografia.

Aconteceu de se interessar pelo improvável, desde cedo. Assim, céu e inferno se misturam aos seus interesses.

Quando no céu: encanta-se.
Quando no inferno: inquieta-se.
Quando mergulhado em ambos: deleita-se.

Estudou dedicadamente a arte da manipulação. Há dias em que a usa em benefício alheio, em outros, exerce o direito ao egoísmo, mas sempre a usa de forma elegante. Há os que o temem e os que o respeitam, mas também há os que dele duvidam e sem reservas. São essas pessoas que mais lhe atraem a atenção. Observá-las é como requintar sua habilidade, já tão afiada, de levá-las aonde ele deseja.

Considera-se uma pessoa comum, de rotina desinteressante, cuidadoso no trato com suas expectativas mais poderosas e seus desejos teimosos. Dedicadamente, ele tenta ser o indivíduo que cabe nessa definição. Porém, como ser considerado comum ao ser inspiração até mesmo para os intelectuais e suas filosofias? Quando o que diz reverbera nos mais importantes – e imponentes – círculos?

Gosta de pensar que continua a ser um homem de história a ser escrita, com mais poder autoral sobre ela. Mais poder que qualquer outro para decidir seu caminho. A ironia se debruça no fato de que ele não tem um algo ou um alguém que lhe impulsione a prospectar possibilidades. O que vem vivendo, desde sempre, é à sombra do seu talento de se infiltrar nas histórias de outros, de tal forma que, eventualmente, ele se torne mais dono dos desfechos delas do que das suas próprias.

À noite, deita-se em sua cama, sozinho, fumando um cigarro atrás do outro, bebendo sua bebida preferida e se lembrando das conquistas vazias do dia.

Nasceu...

Então, que a vida lhe caiu feito roupa de domingo, a mais bonita, de melhor caimento, que serve para orientar a fantasia de que se é o que se demonstra em um único dia, quando, por gosto ou por necessidade, tem de se atuar como se a vida não oferecesse menos do que o aprazimento.

Ele sabe que tem todas as ferramentas necessárias para ser uma pessoa mais útil a si e aos outros. Sabe que tem inteligência para se tornar participante ativo dos seus enredos e da vida daqueles que aprecia. E que existe a possibilidade de o deslumbramento que muitos sentem por ele se tornar mais robusto se baseado na realidade. Ainda assim, escolhe continuar a se esgueirar pelas histórias alheias, furtando delas restos de prazer, tecendo nelas fragmentos de seus reais desejos, construindo uma realização falseada, de quem não soube, depois de nascido, render-se à vida.

Imagem: foto da obra “The Burghers of Calais”, de Auguste Rodin.

Comentários

Carla, parece que você se enreda na vida da gente para extrair matéria para os seus personagens. :)
whisner disse…
Que texto fantástico. Parabéns.
Zoraya disse…
"que a vida lhe caiu feito roupa de domingo, ", ai, Carla, que essas suas frases deveriam ser reunidas num livro em formato de asas de borboleta. Amei, como sempre.
Carla Dias disse…
Eduardo... Sou definitivamente grata aos que me emprestam suas biografias.

Whisner... Obrigada!

Zoraya... Adorei a ideia :)

Cristiana... Agradecida!

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