GAROTA, INTERROMPIDA - PARTE II - Analu Faria

Garota, Interrompida (Parte I)


Dois minutos se passaram e Carmela parecia não estar perto de seu objetivo.

— E se eu não me lembrar? — perguntou a velhinha, aflita com o fato de morrer sem ter completado uma última e simples missão.  — Porque, olha, já se passaram dois minutos e...

— Um minuto e cinqüenta e seis segundos.

— O narrador disse que já se passaram dois minutos.

— Ah, Carmela... você está prestes a morrer e ainda confia na precisão do narrador?

Carmela, desconcertada, esperou um pouco mais, antes de quebrar o silêncio.

— Eu não estou conseguindo me lembrar. Você vai me levar mesmo assim?

— Não, eu disse que te esperaria e vou esperar.

Mais alguns minutos se passaram, sem qualquer palavra do anjo ou da futura defunta. Carmela começava a se desesperar, mas já não sabia se era pelo esquecimento ou pela morte iminente. Não pensava em morrer agora, nem nos próximos meses, nem nos próximos anos. Pensou nos filhos que não teve e, por alguns segundos, arrependeu-se de não ter prole. Talvez porque tivesse passado a infância e boa parte da adolescência em orfanatos, não quis ter filhos — costumava dizer que quem não teve mãe não saberia o que fazer quando se tornasse uma. Pensou também em Agenor e em todos os encontros e desencontros da longa vida a dois. Lembrou-se, por último, da prima querida.  Luíza foi quem tomou para si o papel de ser a família de Carmela. O pai desta a abandonara, a mãe morrera no parto. Os tios — pais de Luíza e únicos parentes de Carmela — não quiseram criar a sobrinha. “Você sabe como é, já temos uma menina a caminho, não temos condições.” Nunca se sentiram responsáveis, nunca tiveram remorso. Visitavam Carmela em datas comemorativas e, de vez em quando, depois de algum sermão mais longo na igreja, apareciam no orfanato. Luíza ia sozinha, muitas vezes, à Casa São Judas Tadeu, brincar com Carmela. A proximidade continuou pela vida afora.

Luíza também se fora, há dois anos. Foi interrompida por um infarto no meio de sua viagem dos sonhos. Carmela gosta de pensar que a prima morreu feliz. Emocionava-se toda vez que imaginava a morte de Luíza, ascendendo aos céus com um chapéu de praia e aquele maiô azul chique, que esperara tanto para ser usado. Carmela sentiu as lágrimas nascerem nos olhos.

— Luíza?

— Sim. Sempre me emociono.

— Talvez você possa encontrá-la.

A mulher soluçou. Sentia tanta coisa ao mesmo tempo, que não sabia se expressar. Acima de tudo, porém, teve raiva:

— É assim que você quer me convencer a ir com você? Senhor anjo Gabriel Buendía, o senhor é um... um... enganador! É parte de todo esse esquema.

— Que esquema, Carmela? O anjo disse, com genuína empatia pela senhora.

— Esse esquema que acaba com tudo, que interrompe nossos planos. Nós temos planos, sabe, senhor anjo? A Luíza, por exemplo, só queria ver a água verde do sul da Bahia. Só isso. Aí vêm vocês e mandam um infarto, pronto, acabou-se! Meu Agenor vocês levaram também de repente, nem um aviso, nada. Ainda trabalhava, coitado, aos sessenta e nove anos. Estava no meio de um projeto e aí... aquele derrame. Agora... agora eu é quem sou interrompida.

— Interrompida?

— Sim. Interrompida. Olha, eu vim aqui só pegar uma xícara e...

Uma xícara! Carmela estacou. O anjo sorriu calmamente para ela. A mulher, estupefata, levou a mão à testa. Uma xícara! Uma xícara! Gabriel continuava sorrindo, benevolente. Não se via mais qualquer rastro de irritação em seu rosto. Tinha, porém, um ar de quem sabe que está certo. Carmela desconfiou que aquela criatura era paciente demais para um anjo da morte:

— Você sabia o tempo todo?

— Sim. E a xícara nem está mais aqui — apontou para o criado mudo, que tinha uma marca redonda escurecida, feita pela xícara de chá preto que Carmela havia levado para a sala, um pouco antes.

— Eu me confundi. Já tinha levado a xícara...

— Sim — o anjo continuava sorrindo.

— Mesmo assim, o senhor sentou-se aqui, esperou.

— Sim.

— Por quê?

— Não sei, Carmela. Talvez porque você tenha sido a primeira pessoa que tenha se recusado tão veementemente a ir embora, por conta de um “plano” tão simples como lembrar-se de algo que veio pegar no quarto. Confesso que eu estava meio irritado, mas sua relutância também foi um pouco tocante.

— Eu me sinto uma idiota.

— Vocês humanos são todos meio idiotas.

— Mas é que... eu estava no meio de algo tão simples. O Agenor, por exemplo, estava trabalhando, sabe, era um projeto importante e... a prima Luíza estava realizando um sonho. Eles foram interrompidos fazendo coisas tão... nobres! E eu fui interrompida fazendo uma coisa tão banal!

— E você acha que isso faz alguma diferença? Para mim, para o Depois? Todos deste mundo foram e todos serão, um dia, “interrompidos”. Buscando uma xícara de chá, ou se confundindo em fazer isso, como você fez, salvando a vida de alguém, tomando um café, indo para o trabalho, dormindo, enchendo a cara, parindo, pulando de paraquedas, depois de ter recebido uma promoção, pouco antes de vencer uma corrida, no meio do tratamento, fazendo sexo, limpando a casa, praticando ioga ou narrando uma história: é assim que vocês todos partem.

— Narrando também? Achava que os narradores não morriam.

— Narrando também. Eles são mortais, ora.

Carmela conformou-se. Se até os narradores morriam, ela aceitava, então, a inevitabilidade do fim.

— Você disse que talvez eu veja a prima Luíza. E... Agenor, também?

— Sim, talvez veja os dois. Mas eu não tenho certeza.

— E o narrador? Quando o verei novamente?

— Em breve, Carmela. Já recebi as ordens para “interrompê-lo” — na sua definição.

Carmela levantou-se e tomou um ar solene. Suspirou profundamente, juntou toda a coragem que tinha, segurou a emoção.

— Bem, então, senhor anjo Gabriel Buendía, eu vou com o senhor. Estou pronta.

O anjo também se levantou, ofereceu a mão a Carmela, que aceitou. Em seguida, os dois caminh



Fim.

Comentários

Albir disse…
Analu, se pudesse escolher um narrador para minha interrupção, seria você.
Impossível ler uma vez só!
Anjo produtivo esse: duas interrupções de uma visita só. :)

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