SOBRE SALAS DE ESTAR >> Carla Dias >>

Houve dias em que me lamentei por coisas que não fiz e pessoas que nunca encontrei, até por sentimentos que não saberia explicar se me perguntassem a respeito. Sentia dó de mim por reconhecer o sofrimento alheio com tanta intensidade. Sentia-me aviltada de tal forma, que parecia que jamais me recuperaria daquilo tudo.

Houve dias em gritei, exigindo que Deus me explicasse... Que tragédias eram aquelas que eu presenciava, como boa espectadora de televisão? Esmurrei minha parede em nome daqueles que sofriam as consequências do descaso e do abandono.

Senti dor, quase certa de que a minha se equiparava à dor do outro.

Levou tempo até que eu me reconhecesse nesse mundo e compreendesse a diferença que há entre viver e ser uma reles espectadora de tragédias, observando-as da sala de estar lá de casa.

Compreendi que colocar-se no lugar do outro não é sentir a dor dele e viver suas experiências. Sendo assim, não tenho o direito de me comportar como se fosse eu a ofendida pela indiferença, espancada pela incompetência daqueles que deveriam zelar pela minha segurança. Não sou eu a sofrer privações do que é de direito de qualquer ser humano.

Com essa compreensão, veio o alívio. Tão bom não me sentir mais pressionada pela dor do outro, como se pudesse senti-la pulsar dentro de mim. Já me bastam as tragédias pessoais, aquelas com as quais todos nós temos de lidar, eventualmente.

Houve dias em que eu culpava o universo pelas mazelas da vida. Também vociferava — entre um gole de café e o pagamento de uma conta pela internet — a respeito de o ser humano não ter mais jeito. Eu literalmente brigava com o mundo, andando de lá para cá, na minha sala de estar. Comovia-me profundamente ao ver na televisão aquela dor toda. A dor, a dor, a dor...

Com aquela compreensão, dei-me conta de que, na vida de quem vive uma tragédia, as bordoadas não vêm em cenas que esperam passar comercial de xampu, celular, refrigerante para então acontecerem, tampouco chegam com textos escritos para ver quem ganha mais audiência. Acostumada a ver o mundo pelos olhos que espreitam, libertei-me do hábito de desvalorizar a dor do outro ao assumi-la como minha. Não era por mal... Era por mau hábito. A dor não é minha, não mesmo. Respeitar essa verdade é respeitar aquele que realmente sofre o impacto do acontecimento; quem terá de conviver com as consequências dele.

O que me dói, na verdade, dói na conta da empatia. Dói porque sou aquele ser humano sobre o qual se fala tanto... O que não tem mais jeito, mas tem.

Quando assumimos nosso papel de testemunha de uma tragédia — mas não reles espectadora, estática —, deixando de lado toda a conversa que gastamos sobre como deveria ter sido, os motivos de a situação ter chegado a tal ponto, enfim, a lamentação toda sobre como “iremos” sobreviver a isso, temos a percepção apurada e tempo para nos dedicarmos ao que realmente importa: pensar em como podemos ajudar essas pessoas a passarem por momento tão difícil, e exigirmos, como cidadãos e seres humanos, que os culpados recebam a devida punição.


carladias.com

Comentários

Zoraya disse…
Falou tudo, Carla. E bem, como sempre. Obrigada. Bjs
Albir disse…
Me lembrou Drummond:"Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores".
Carla Dias disse…
Zoraya... A gente fala tudo e sempre falta, não? Beijos!

Albir... Que lembrança bonita. :)

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