CATIVEIRO >> Carla Dias >>


Olhos fechados. Quem sabe há quanto tempo? Ele não sabe dizer. Ela não tem ideia de quanto ou quando. Prostrados diante de quem? Há quantas horas, dias, vidas? Braços ao lado do corpo, estirados, apesar do desejo pelo movimento. Nunca sentiram tanta falta de serem autores de acenos. De sentir o vento bater na palma de suas mãos.

Ouvidos atentos. Escutam palavras de quem? Ele não precisa saber, porque qualquer palavra que não ofenda soa alento. Qualquer conversa que o alcance lembra a ele que há mundo lá fora. Ela é menos otimista, e lamenta não haver como não calar a felicidade alheia que lhe chega a cada vez que abrem a porta que os separa do mundo.

Ao acordarem, uníssono despertar, ele beija a fronte dela, inspirando-lhe um estrangeiro arrepio. Ela se amiúda para caber no abraço que ele não pode lhe dar. Trocam palavras desconexas, apenas para se lembrarem do som de algumas delas. Ele diz “bom dia”, a voz carregada de esperança de que essas palavras prefaciem a realidade. Ela rebate com esgar, “é só mais um dia, depois de outro, antecedendo o próximo”.

Quando não conseguem evitar estar em casa em um mesmo momento, eles se perdem pelos cômodos, e cada qual tem o preferido. Ele cuida de seus assuntos na biblioteca. Ela cuida de sua vida na sala de estar. Encontram-se, solenemente, na hora do jantar, diante de uma mesa posta com cuidado que um dia tiveram um com o outro. Reverberam palavras necessárias, embasadas na cordialidade dos que não sabem viver juntos, mas acreditam ser impossível viver separados.

Não imaginaram, às malhas do pessimismo mais aguçado, que um dia se tornariam prisioneiros um do outro. Viveriam à mercê de um cativeiro emocional, cerceador da espontaneidade que a vida exige, a fim de ambientar levezas em espíritos atordoados. Se não levezas, levantes.

À noite, eles desmontam como se fossem fantoches sendo desprezados pelos seus manipuladores. Caindo um sobre o outro, amontoam-se feito sacas de batatas. Permanecem estáticos por tempo que já não sabem contar. Segundos já se arrastaram como se fossem horas. O tempo pode ter ritmo contínuo, mas para eles, ele é volúvel e quase sempre se arrasta, atuando como coletor de desmedida desesperança.

Assim, eles se perdem fácil um no labirinto do outro. Caem na conversa fiada desse arrebatador silêncio que os cerca, desagrega, aflige e destempera. Caem no sono, em um tímido roçar de pernas, tão cansado está o desejo deles de espiar tais abismos.

Um sofrendo de devaneios e o outro de espanto infinito.


Imagem © Maria Amaral

carladias.com


Comentários

Zoraya disse…
"À noite, eles desmontam como se fossem fantoches sendo desprezados pelos seus manipuladores." sen-sa-ci-o-nal!!!
Anônimo disse…
Verdadeiro cativeiro emocional mesmo. Triste realidade de muitos. Ótimo texto. Parabéns!
Carla Dias disse…
Analu... Obrigada. :)

Zoraya... Obrigada. :)

Anônimo... Obrigada. :)

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