EXERCÍCIO DE TOLERÂNCIA >> Clara Braga

Durante um desses momentos em família, estávamos conversando e chegamos à conclusão de que aquelas salas de cinema menores, que ficam em shoppings pouco badalados e que passam tanto filmes blockbusters quanto os tais filmes cults estão se tornando cada vez mais as melhores opções, afinal, ir ao cinema virou um exercício de tolerância. Aliás, virou não, sempre foi, mas como as pessoas estão ficando cada vez mais sem limites, a situação piorou.

Lembro que quando eu era menor, essa questão de classificação indicativa não significava muita coisa, eu conseguia entrar em tudo quanto era filme sem autorização nenhuma dos meus pais e sem questionamento nenhum dos funcionários do cinema. Então, é claro que eu me juntava com meus amigos para ir assistir a filmes de terror, afinal, nada era mais legal do que assistir a um filme que eu não tinha idade para ver, a gente se sentia grande. Na verdade, o mais legal mesmo era fazer escândalo nas cenas que o assassino esfaqueava os personagens. Nossa, a gente berrava, batia pé no chão e tudo mais que tinha direito. Não me orgulho disso, mas como os mais velhos costumam dizer: é fase! E foi divertido! Atrapalhamos muita gente, com certeza, cada vez que íamos arrumávamos uma bagunça diferente para fazer, mas era em momentos exatos e por um período de tempo calculado, ou seja, só enquanto durar a cena do assassinato. Logo que o filme acabava, eu voltava para casa e ia dormir, pagava todos os meus pecados. Tinha pesadelo a noite toda, chorava, jurava que a qualquer momento o cara do pânico ia entrar no meu quarto com aquela máscara medonha e me matar. E vai a notícia boa para todos aqueles que eu atrapalhei, o pesadelo não durava só uma noite não! Coitados dos meus pais!

Quando fui ficando mais velha, sempre que entrava em uma sessão cheia de adolescentes já pensava: essa sessão vai ser difícil. Sentava fora da mira do grupo, para não rolar pipoca na minha cabeça, e pronto, nem prestava muita atenção, afinal, é fase. Confesso que as coisas chegaram a melhorar, quando a classificação passou a valer de fato, mas durou pouco, afinal, a tal da fase parece que não passou para muitas pessoas.

Hoje em dia cinema quase não é mais tão escuro, afinal, se as pessoas ficarem duas horas sem trocar mensagem no whatsapp ou olhar o facebook podem ser dadas como desaparecidas e, quando a gente menos esperar, o FBI vai invadir a sessão procurando por alguém. Tem também as pessoas que atendem a ligação, essas são as melhores, afinal, nunca atendem rapidinho para dizer que estão no cinema, atendem para bater papo. Agora, melhor mesmo são as pessoas extremamente delicadas que decidem pedir silêncio. O que aconteceu com o famoso: ssssshhhhhhhhhhhh!!!!!???? Concordo que eles se tornaram pouco eficazes, mas convenhamos, por mais que algumas pessoas mereçam um recado mais direto, será que chegamos ao nível do: cala a boca sua vaca!?? 

Entendo que é difícil falar de tolerância quando as pessoas estão cada vez mais abusadas, tenho certeza que a pessoa que chama a outra de vaca apenas colocou para fora o pensamento de quase 100% das pessoas que compartilhavam daquele momento, mas ainda tenho aquele velho pensamento: quando partimos para a violência, seja ela do tipo que for, também perdemos nossa razão.

Inocência demais, alguns diriam. Na verdade, só acho que precisamos dar um basta nessas situações animalescas que pioram cada dia mais, afinal, se alguém chama de vaca a pessoa que está conversando, me pergunto o que vão gritar para os que, no meio sessão, levantarem o tal do “pau de selfie”. 

Comentários

Danielle Morais disse…
Caríssima Clara,
realmente adorei sua crônica.
Não basta irmos muito longe como você mesma retrata, para presenciarmos acontecimentos causados pela falta de tolerância. Gostei também das breves passagens que satirizam o uso da tecnologia.
Além disso, foi bastante interessante a forma como abordou esse assunto, não sendo da mesma maneira massante e repetitiva como vemos por aí.
Concordo plenamente que a tolerância é um exercício e que deve ser praticado diariamente para alcançarmos um mundo melhor para viver.

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