DIA DE FÚRIA >> Whisner Fraga

Era natural que muitos de nós saíssemos de Ituiutaba, pois, naquela época, o município oferecia poucas opções para quem quisesse continuar os estudos. Pois bem, Uberlândia era uma cidade em crescimento e a universidade federal de lá, uma alternativa para nós. Éramos, em geral, pobres e, portanto, obrigados a dividir com desconhecidos as casas situadas nos bairros mais próximos dos câmpus Santa Mônica e Umuarama.

A primeira dessas repúblicas em que morei albergava sete indivíduos, de modo que necessitavam de um oitavo. Cheguei até lá porque um amigo de um conhecido do empregado do ex-patrão de meu pai sabia de um primo que morava em um apartamento que estava com a parte de baixo da beliche desocupada. O aluguel saía barato, apesar dos quatro quartos que o local possuía, e se encaixa no orçamento de meus pais. Sim, porque estudante de Engenharia não trabalhava naquele tempo.

Dos sete que lá estavam, quatro eram estudantes, dois bancários e um vagabundo. Como eu era calouro no curso de Mecânica, me tornei o quinto universitário. Não vou descrever os sujeitos, porque isso é matéria de romance, não de crônica. Romance que pretendo criar, diga-se de passagem. Aos poucos, fui me acostumando à rotina da república, que, evidentemente, tinha suas regras.

Uma dessas regras era sacanear alguém, de segunda a quinta. Porque, de sexta a domingo, quase todos viajavam e a baixaria não teria público. Não foi no primeiro dia que eles confiaram em mim, a coisa foi lenta e se deu no terceiro dia em que eu lá morava. Isso porque eles precisavam de outra pessoa para apoquentar alguém que merecia há muito tempo: um vizinho barulhento e mimado que morava com os pais, no apartamento de baixo.

Lá todos tinham apelidos e, a bem da verdade, não me lembro do nome de ninguém, mas sei que, quem me chamou para a bagunça foi o Batman, um conterrâneo. O motivo da alcunha, vocês podem desconfiar: ele tinha o hábito de dormir durante o dia e trabalhar à noite. Isso porque estava no último ano do curso de engenharia elétrica e estagiava em uma importante fábrica de cigarros. Ia pouco à universidade e acordava por volta das dezenove horas para alguma peripécia. Tinha tempo de sobra, pois só precisava estar no estágio a partir das vinte e uma.

Batman estava com um travesseiro a tiracolo e ambos conversávamos encostados no peitoril, reclamando da vida. Morávamos no terceiro andar. Na janela de baixo, o moleque fumava um cigarro e ouvia Iron Maiden. O tom de nosso papo foi mudando e dali a pouco eu gritava. Que a vida estava difícil, que eu odiava aquele lugar, que eu não me acostumara à vida estudantil longe de casa. Nisso Batman começa a me recriminar, que eu sou fresco, que eu devia crescer e tal. Fomos nos empolgando com a atuação e dali a pouco começamos a simular uma briga: tapas, pontapés, xingamentos e a coisa ia engrenando.

Até que, em determinado momento, ouvimos a campainha: devia ser alguém do prédio, preocupado. Não fomos atender e nem paramos com a comédia. Dali a pouco, o clímax. Eu berro: “seu filho da mãe, vai falar merda no inferno, eu vou te jogar lá em baixo!” Ouvem-se barulhos amedrontadores e um grito, ao mesmo tempo em que Batman atira o velho travesseiro janela afora. Do apartamento de baixo escutamos um caos de gente desesperada, um gordinho uivando, num falsete de dar pena, que alguém lá de cima morrera esborrachado.

Comentários

albir disse…
Whisner,
muito divertidas suas memórias.
Zoraya disse…
Whisner, transforma logo isso em romance, vai!
whisner disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
whisner disse…
Zoraya e Albir, muito obrigado pela leitura. Um grande abraço aos dois.

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