A FARSA >> Whisner Fraga

Como em toda república, devíamos respeitar as regras aprovadas em assembleia: jamais se envolver com a diarista, não comer o último bife da panela, obedecer os mais antigos de casa, divulgar as festas do dia, não filar as guloseimas do próximo e não apelar com as brincadeiras sacanas dos colegas. É claro que honrávamos uma ou outra, de acordo com o humor do dia, e isso não causava grandes atritos. A norma mais complicada de acatar era a que dizia respeito aos doces alheios.

Íamos para casa: Ituiutaba, Caçapava, Ribeirão Preto, com certa frequência e, como todos sabem, as mães são muito parecidas umas com as outras, mudando apenas, como dizem, de endereço. Também é sabido que elas não gostam de ver seus filhos passarem fome. Assim, nada mais natural que voltássemos de casa com as malas cheias de petiscos.

A questão que surgia nos dias seguintes era angustiante: dividir a lambiscaria com os amigos ou esconder tudo e aproveitar sozinho? Vejam bem: é mais do que uma questão moral, é uma questão de sobrevivência. Como repartir um pote de doce de leite com sete marmanjos? Difícil. Fato é que certa vez o Baiano voltou de Feira de Santana com um punhado de doce de dar inveja a qualquer um.

Cada um tinha seu esconderijo, que ficava, invariavelmente, dentro do guarda-roupa. Como nossa criatividade de futuros engenheiros estava em ebulição, não pensem que isso tornava o segredo algo fácil de ser descoberto. Quando o Baiano chegou com aquele saco de iguarias, ficamos loucos. Até matamos aula para procurar onde é que ele as abrigava. Eu, pelo menos, posso afirmar que não achei o local e, consequentemente, não comi nenhum daqueles doces.

Um dia, Baiano marca uma reunião geral e não divulga a pauta. Começa explicando que o volume da sua sacola diminuíra drasticamente e ele não tinha estômago para comer tanto assim, de modo que a conclusão era óbvia: alguém estava roubando sua comida, o que era uma clara afronta aos princípios norteadores da boa convivência naquela república. Até aí tudo bem, todos éramos caras-de-pau o suficiente para ficarmos quietos e calados.

Só que Baiano não era trouxa, tinha dez anos ou mais de experiência em inúmeras moradias estudantis e não ia deixar a coisa passar barata. Em determinado momento, nos pega de surpresa ao afirmar que sabia quem tinha subtraído seus petiscos. E apontou o dedo para o Gordinho: foi você, seu filho da mãe. Assustado, acuado, Gordinho tenta se explicar: mas eu nem gosto de cocada, como é que pode ter sido eu? Baiano começou a gargalhar: estava contente por ter descoberto o ladrão. Como ninguém entendia o motivo do riso, ele explicou: como é que você sabia que era doce de coco, seu malandro, se nunca disse a vocês o sabor, se não tinha nenhum rótulo no vidro e se eu não tinha dado nem uma colher para ninguém daqui?

Comentários

albir disse…
Parabéns, Whisner, por mais esse fragmento de memória, sempre tão interessante.
Cronicatijucana disse…
boa, Whisner!

sempre com bons textos e de quebra divulgando o nome da nossa Ituiutaba.

abraços,
enio.

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