A FILHA DA MÃE >> Albir José Inácio da Silva

Jerusa posa de quem cumpriu o seu papel. Não que tenha se dedicado ou acarinhado a velha, mas tinha representado bem. Isso a deixa confortável, quase alegre, quando a última pá de terra é jogada. Óculos escuros escondem olhos secos, que passeiam pelos presentes a perscrutar-lhes os pensamentos, enquanto a voz simula emoção adequada à ocasião.

Foram doze anos aturando o mau humor e as reprimendas por causa de namorados, porque abandonou a escola e não parava em nenhum emprego. Doze anos ouvindo que gastava demais e não ajudava nos trabalhos da casa. Doze anos escutando ameaças de que tudo seria vendido e o dinheiro entregue a instituições de caridade.

Agora acabou o tormento. Já ia tarde. Dava-lhe nos nervos há tempos aquele monte de ossos entortados, aquela pele rançosa, aquele cheiro de mofo. Dali já avistava a saída do cemitério. Acabava de enterrar seu passado. Era vida nova. Sua vida e seus bens.

Um pouco à frente do cortejo percebeu olhos que a encaravam. Era Tica, a filha da vizinha. Não gostava da garota. No início sua presença na casa tinha até sido bem vinda. Fazia companhia pra velha, deixando Jerusa livre para os bordejos. Mas, com o tempo, passou a ser uma perigosa testemunha de sua impaciência, uma ameaça à imagem de boa filha que, a duras penas, tentava preservar.

Não sabia que tanto tinham para conversar, uma menina de doze anos e uma velha de mais de setenta. Enviando uns rótulos que a velha juntava, Tica inscreveu-a num sorteio anunciado na televisão, e Dona Honorina ganhou um celular. As duas passavam o dia todo mexendo no aparelho. Era um celularzinho vagabundo, mas com essas novidades de hoje: tira fotos, grava voz e faz até ligações. O que mais divertia Dona Honorina era ouvir a própria voz gravada. Dava gostosas e desdentadas gargalhadas.

Agora ali estava Tica com aquele olhar atrevido. Ainda bem que não teria mais de aturar aquela pirralha. Jerusa olhou de novo e viu, ao lado de Tica, a mãe de Tica com o mesmo olhar desafiador. Deu de ombros, não devia nada a elas.

Já via os carros do lado de fora, mas as pessoas andavam devagar. Tinha de acompanhar o cortejo, mas a vontade era de correr logo dali. Lembrou-se de ontem. A velha estava naquele fala, grava, ouve e ri, quando sentiu a dor no peito. Ainda bem que Tica não estava lá.

A SAMU chegou mais depressa do que Jerusa desejara, mas não teve jeito, a velha empacotou. E não havia surpresas, a velha era doente mesmo, era velha mesmo, e não poderia durar muito mesmo.

Envolvida lá com seus planos e pensamentos – a casa valia uma fortuna, havia outros imóveis e ainda ficava livre daquele traste - Jerusa nem se preocupou com aquela porcaria de celular. Tivesse lembrado e impediria Tica de levá-lo, nem que fosse para atormentá-la.

E é o que deveria ter feito. Sentada no sofá, ao lado da mãe, Tica vasculhou o aparelhinho, examinando melhor o que já considerava sua propriedade. Foi então que ouviram a voz sufocada de Dona Honorina: “... o remédio... aquele ali... embaixo da língua... depressa...”. Em seguida, nítida e forte, a sentença de Jerusa: “Não! Chega! Você já tomou remédios demais. É melhor descansar de uma vez, que assim descansamos todos”. E as imagens desse diálogo foram facilmente adivinhadas pela vizinha.

A última vez que Jerusa viu aquela maquininha do inferno foi na cama desarrumada, quando a mãe foi levada para o hospital. Mas agora, sob o pórtico do cemitério, reconheceu o celular na mão do homem que lhe barrou os passos.

“A senhora é a Dona Jerusa? Vire-se, por favor!”

Comentários

Zoraya disse…
Adorei!!! Bom demais quando o bandido tem um gostinho de vitória antes da queda.

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