MI BUENOS AIRES QUERIDA [Ana González]

Viajar é exercício de imaginação. Imagens e desejos que se adiantam ao deslocamento físico me capturam e me provocam. Foi assim dessa vez. O destino era Buenos Aires.

Logo após a chegada ao hotel em San Telmo, fui ao café da manhã duas quadras à frente. Aconchego em lugar antigo de histórias a serem adivinhadas. Enquanto bebericava o chá com leite e comia as torradas negras com um tipo de queijo cremoso, percebi que em dois ou três ônibus que passaram pelas janelas que davam para a esquina, grupos barulhentos agitavam bandeiras verde-brancas. Seria manifestação política?

À procura do centro, saí pelas ruas do bairro histórico e boêmio, andando por seu esquadrinhado geométrico de ruas estreitas e casas com portas de bandeira alta. Eu olhava os janelões fechados, com vontade de saber o seu interior. Alguns quarteirões depois encontrei o que buscava.

Enquanto isso, grupos de homens a pé com bandeiras verde-brancas iam à mesma direção. Curiosa, seguia ao lado deles. Ao longo do caminho fui me dando conta da enormidade do movimento que se armava. Essa era a Buenos Aires da mídia impressa atual e dos telejornais. Mas, não era a da minha fantasia.

À frente, em um cruzamento de grandes avenidas, uma pequena multidão se reunia, agitando bandeiras maiores e organizando o som de bumbos. Não brinquei com a sorte. Decidi subir a avenida em frente, mudando um pouco o itinerário planejado.

Foi assim, com uma surpresa não pertencente a roteiros turísticos, que iniciei o ritual da Buenos Aires que me coube. Durante os dias da estada não pude esquecer esta experiência, apesar dos parques verdes e dos museus de Palermo. Apesar da visita guiada no Teatro Cólon, em que tentei inventar um rosto para o terceiro arquiteto que finalizou sua construção. Outros dois, falecidos antes do projeto concluído, como fantasmas saíam detrás das colunas a me assombrar enquanto a guia descrevia a sala em estilo francês para as sutilezas de uma elite rica, com mocinhas em idade de casar sendo apresentadas para a sociedade. Très chic, sans doute.

Lá fora, vi pessoas mexendo nas caixas de lixo na rua, vi mendigos dormindo em praças. Vi sinais de uma situação econômica questionável, com a moeda do país dividida entre a oficial e a outra, ilegal. O dinheiro sumido do bolso das pessoas, o cambio furando as regras do governo controlador. Desgaste dos tempos atuais. Os dados novos da realidade não diminuíam o desejo por essa cidade. Mas, havia enorme distancia entre a fantasia e a realidade, entre a memória e a presença.

Em cafés apreciei delícias pecaminosas e a postura discreta das pessoas a folhear livros e jornais. Nas inúmeras livrarias que se multiplicam, me consolei da pobreza ledora brasileira. Sinais do passado reverberando na elegância dos casacos, nos gestos lentos, nos vitrais coloridos. Ou no desenho das praças e dos museus. Ou no perfil dos prédios e quarteirões de arquitetura grandiosa. Era dia de sol aberto e vento gelado que cortava a pele enquanto os olhos se alongavam largamente por onde o ônibus aberto passava. Tratava-se de uma linda cidade pequena o suficiente para em três horas se entregar ao viajante.

Nas fotos de Evita, espalhadas em bancas e casas de comércio, as saudades do povo. Clima de tango, intenso, emocional. Outras fotos de Guevara e do casal Kirchner apareciam aqui e ali.

Mas a iniciação da manhã do primeiro dia se mesclava a esses e a outros tempos e espaços, em flashes que se multiplicavam. Eu estava desconfortável como um turista mal agradecido, que rejeita o que lhe é oferecido. Traição. Tentei me desculpar. Será tremendo engano frustrar-se.

Recolho-me ao hotel em estilo colonial. Ao abrir a porta da entrada, os dois cães se aproximam mansos. Encontro a máquina de costura na sala de entrada, perdoada em sua velhice por não mais cerzir nem fazer as costuras de camisolas. Os vasos pelo corredor até o meu quarto me recebem e me fazem recordar o belo. Um cachorro latindo na vizinhança. E pergunto à pequena e barulhenta geladeira: Vou poder dormir?

Há nostalgia e um presente que não se quer. Resistência vã, luta inglória. A cidade é tudo o que eu percebo dela, inclusive (ai, principalmente) a realidade. Portanto, desisto e enquanto tento dormir olho o madeirame no teto.

Repasso as lembranças de uma cidade desejada de forma quase obscena. Volto aos corredores do Teatro Colón. Os dois fantasmas lá estão. Em seguida, reconstruo da primeira manhã o momento inaugural de uma estranha iniciação. Então, vindos detrás das muitas colunas, surgindo pelas escadarias atapetadas, me deparo com outros fantasmas. São muitos, vindos de teatros de outras cidades amadas do mundo. Em festa, em profusão. Não portam bandeiras, mas movimentos leves. Envolvo-me nessa transparência. Não reclamam, mas convidam-me. Sem surpresa, com alívio, entro na festa. No tapete vermelho aveludado, todos dançamos um tango.

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