UM POUCO ACIMA DAS CUMEEIRAS >> André Ferrer
A verdadeira evolução
da espécie acontece quando aprendemos a fazer parte da multidão sem que
percamos a individualidade. Ser só individualista é ruim. Mais uma ovelha no
rebanho, péssimo. Encontrar o equilíbrio entre o coletivo e o individual,
entretanto, não tem sido uma tarefa simples para o ser humano. A começar, é
claro, pelo abandono do maniqueísmo que impossibilita este achado. Sem
equilíbrio, como é ordinário acontecer, ou nos tornamos egoístas ou nos
transformamos em gado.
A arte do meio-termo,
infelizmente, não se acha nos manuais técnicos. Há manuais, decerto, e muitos
datam de séculos. Alguns, aliás, desapareceram. Outros quase não chegaram às
gerações futuras e, se ocorreu, estão distorcidos pela oralidade. Marcados na
rocha e nos pergaminhos, apesar de sagrados - e da incontestável autoridade -,
pouco trazem de pragmático no que se refere ao domínio humano do necessário
equilíbrio entre o eu e os outros.
Para que servem tais
instruções? Para dominar mediante a fascinação e o terror. A arte do meio-termo
foi apagada ou, se menos do que isso, foi adaptada à hipocrisia dos poderosos.
Antes e depois da
Revolução Francesa, existiram e existem reis e cleros. Depois, com a completa
absorção do esclarecimento pelo despotismo, persistiram reis e cleros
infinitamente reproduzidos em tipos móveis, em cores e via satélite. O rebanho
na outra extremidade da fibra ótica. E as violas - belas violas - recheadas de
bolores invisíveis embaixo de filigranas e arabescos feitos de ouro e nácar.
Penso nisto quando vejo
excesso de transcendentalismo ou de religiosidade nas pessoas. Fico à espera
daquela escorregada porque ninguém conserva a santidade por vinte e quatro
horas. Nada mais falso. Nada mais vergonhoso. Nada mais abjeto! A melhor
escolha é a sobriedade. Jamais levantar bandeiras insustentáveis. Relacionar-se
discretamente com as crenças. Porque, sem demora, surge a contradição.
"Por fora, bela viola.
Por dentro, pão bolorento", diz a oralidade ancestral e, repentinamente,
bloqueia-me a organização de técnicas.
Ora, quem sou eu para
tais prescrições? Um punhado de átomos prestes a se dispersar? Um pastor de
dúvidas. Um inocente receptáculo do nada sob o firmamento. É isso que sou, mas
nem assim tenho direito de recomendar as regras do bem viver a quem quer
que seja. E poderia?! Um naco diante dos séculos. O meu terror, apenas, é maior
do que o mundo! Só porque sinto verdadeira gana de compensar o meu fim
ordinário, teria o direito de usar esse conhecimento mágico e incerto acumulado
em auxílio da espada e do cadafalso para ser alguém um pouco acima das
cumeeiras?
Há perigo em
supervalorizar o exterior quando não se dá conta de fazer com que o interior
acompanhe. Não dá para competir! Melhor fugir aos vexames. Por que poucos, na
história da humanidade, conseguiram se garantir externa e internamente.
Comentários
Tão necessária e tão pouco usada.
O caminho do meio, sem letreiros luminosos mas cheio de luz por dentro.
Adorei a crônica!
Tina Bau Couto
http://blogdtina.blogspot.com.br/
Fonte: Crônica do Dia