INCOERÊNCIAS >> Zoraya Cesar
Um dos grandes desafios a que se propõe um ser humano em busca de evolução espiritual é andar na estrada estreita da coerência. Afinar o discurso com a prática e não deixar que seus impulsos mais primitivos ditem o seu comportamento exigem certa dose de sacrifício e exercícios diários. Alguns anos de prática, vigilância constante e oração permanente acabam por demonstrar que, na verdade, é muito mais fácil você fazer as escolhas certas e viver de acordo com elas, mas o fato é que nem sempre, e nem todos nós, conseguimos nos manter firmes no caminhar da estrada reta do ser quem se é, sem máscaras.
E a inconstância da qual somos feitos todos acaba por alimentar o lado escuro da Força, e olha nós aí de novo caindo em tentação. Pensamos que nos conhecemos muito bem, ou àquela melhor amiga, colega de trabalho, vizinho, e de repente somos apresentados a comportamentos totalmente diversos daqueles que esperávamos. E, como o vento que sopra lá também sacode o coqueiro daqui, pode acontecer de presenciarmos aquele ogro, aquela megera assumidos que, do nada, tomam uma atitude inteiramente avessa ao que pensamos ser o seu caráter.
Tomemos como exemplo você, que está aí, lendo essa crônica. Sim, você. Uma pessoa correta, honesta, não rouba, não se locupleta, não recebe nem um centavo de troco a mais, e, no entanto não hesita em contratar um hacker para quebrar a senha do correio eletrônico do seu namorado, marido, esposa, ou o que seja. O pior é que nem é por ciúmes não. Mas ficou curioso, procurou a oportunidade e aí... caiu na tentação.
Você já deve ter ouvido falar de algum gerente de uma empresa qualquer, acostumado a demitir pessoas todos os meses, porque resolveu implantar a maldita da reengenharia e pronto. Sai cortando cabeças sem dó, passa a caneta e olha para o outro lado. Um desalmado, um insensível. Que, ao chegar em casa, trocando uns dedos de prosa (nossa, como isso é antigo) com o porteiro, descobre que ele não conseguiu matricular o filho na escola municipal por falta de vagas. Mais tarde, o desalmado dá uns telefonemas e consegue uma bolsa de estudos para o menino numa ótima escola no mesmo bairro onde moram. E ainda paga o uniforme e o material escolar. E pede para o porteiro não comentar com ninguém.
Rapaz, você é o sonho de toda sogra. Trabalhador, honesto, doador de sangue, faz trabalhos voluntários, gentil, não levanta a voz nem quando está com raiva, se é que você sabe o que é isso, tão tranqüilo é. Zen. Isso quase definiria você não fosse o hábito, totalmente desconhecido aos amigos, de humilhar os subalternos no ambiente de trabalho, às vezes aos berros, em decibéis que sua família nem sabia que sua voz poderia alcançar.
E quem não conhece um salafrário? Aquela pessoa capaz de insinuar ao namorado da melhor amiga que ela não é tão fiel quanto ele julga; que angaria os louros por uma idéia que não foi sua; que sabota um colega de trabalho só porque não gosta dele. Quadro completo? Pois bem, agora o outro lado dessa moeda. Ao passar na rua, esse safardana percebe um vulto escondido debaixo de um carro; curioso, nosso conhecido se agacha e vê um gatinho abandonado e assustado, que provavelmente morrerá em breve, esmagado pela roda do carro, de fome ou de maldade. Ele hesita, hesita, e acaba por pegar o gatinho e leva-o para casa. Não podia deixar o bichinho ali, daquele jeito.
Ainda bem que podemos ser tão incoerentes, por vezes, não?
E aí, terminamos com alguma lição de moral? Não. Tampouco lembraremos que nem todo mundo, ou melhor, quase ninguém é o que parece. Nem aconselharemos a tomar cuidado com as aparências, ou a não fazer julgamentos apressados, percepções que você, a essa altura da vida, já deve saber muito bem, não serei eu a ensinar Padre Nosso a vigário (e lá vamos desenterrar outra antiguidade).
Terminaremos com duas singelas e inocentes perguntas: o que você é capaz de fazer em segredo que os outros sequer desconfiam? Você consegue controlar o lado escuro da Força?
Comentários
Ótima crônica, Zô (Isso tá virando cliché, já). Todo mundo tem um lado bom, e um lado ruim (exceto as sogras - essas são feitas de outro material). Bjos, adorei!
Acho que até as sogras tem um lado luz... kkkk