CIFRÃO TATUADO NO BRAÇO >> André Ferrer
Tão logo apaguei o fogo e a
fervura da água cessou na chaleira, eu reconheci a sobreposição de ruídos que,
aprisionados entre os edifícios da orla, distraía-me particularmente naquelas
madrugadas insones. Da cozinha, percebi a primeira camada de ruídos: alguém que
batia uma porta, que acionava ou desligava um alarme, que fazia um motor
funcionar. A outra camada de sons — delicada como uma renda — vinha do mar: era
o barulho das ondas.
Em Balneário Camboriú, a
arquitetura constitui uma verdadeira caixa de ressonância em alguns pontos. O
lugar onde eu morava em 1998 tinha essa qualidade acústica.
Da minha sacada, eu podia ver outros
insones. Homens e mulheres que ficavam lá fora, sentados em cadeiras de praia
iguais à minha, inseguros e reticentes, por terem perdido o sono. Alguns cigarros
depois, entravam. À distância, eu observava as suas decididas silhuetas e
sentia inveja de tanta coragem enquanto aquelas pessoas, uma a uma, retornavam
para um tipo de luta que eu já considerava inútil.
Era início de outubro e estava
quente mesmo às três horas da madrugada. No último ano, consolidara-se a minha
paixão pelo mate amargo. Nem o calor do verão seria capaz de impedir-me de ter
a cuia e a garrafa térmica ao meu lado.
— Eu não sabia que mateavas!
Virei o rosto. Sorri para a
namorada do estudante com o qual eu dividia o apartamento. Ela debruçou no
alumínio da grade, sorriu e colocou o cigarro aceso entre os lábios.
O fato inusitado queimou-me a
língua por isso eu demorei a responder.
— É melhor do que fumar.
— Pois eu mateio e fumo sem dor
na consciência.
— O teu namorado não gosta.
Ela sabia que o garoto condenava
o tabagismo e, apesar de lageano, também condenava o chimarrão.
— Ele é natureba.
— Põe natureba nisso! Toda
manhã, ele come um sanduíche de couve, tomate, pepino, brócolis, pimentão —
debochei. — E para beber?! O sujeito vira um copo de liquidificador carregado de
leite, cereais e frutas batidas!
— Eu sei. Até parece o André de
Biase nas cenas iniciais do Menino do Rio.
— É um filme antigo — eu disse.
Queria recuperar o sossego e, instantaneamente, vislumbrei um caminho direto e
bastante curto.
Ela tragou e soltou a fumaça. Tinha
quase o dobro da idade do rapaz que, além de vegetariano, carregava um sono
pontual e regular.
— Você já era grandinho nos
anos 80.
— Não tanto quanto a senhora.
— De onde você me conhece?!
Em toda a minha vida, eu nunca
tinha visto alguém transmitir tanta certeza de que estava num beco sem saída. A
mulher ficou pálida. Jogou o cigarro. Entrou na sala, tropeçou na mesa de
centro e voltou a sair. Colocou as mãos no meu braço e, ajoelhada, quis que eu
sentisse o seu coração embaixo da camiseta.
— Ele é chato. Se o teu amigo
fosse legal, eu já teria contado sobre o meu filho. Sim, ele sabe a minha idade.
Sabe que fui casada. Não contei sobre o menino porque o rapaz é chato. Rico,
mas chato. Eu só queria mais alguns dias com ele. Tem o feriadão do dia 15 de
novembro em Floripa. Eu conto. Sim. Vou contar! Tudo bem?! Amanhã cedo, eu
conto. De qualquer maneira, ele saberá por você ou por outro amigo da faculdade.
Homem é tudo assim! Uma verdadeira máfia.
Eu não sabia de filho algum.
Sabia da idade. Do ex-marido. Sabia, ainda, que era professora e bastante rodada
entre a Praia do Canto e o Baturité; que vivia na companhia de surfistas; que,
de vez em quando, ela estapeava a macaca atrás dos quiosques da praia; e nada
mais. Era isso! Algumas garotas, minhas conhecidas, apenas comentavam sobre o
desespero financeiro da mulher. Uma delas, a propósito, numa noite parecida com
aquela — pouco antes de me despedir e deixa-la com filosofia de sobra na mente
e um travesseiro a lhe separar os joelhos —, não se cansava de perguntar o
porquê de alguns rapazes, como eu, serem tão inacreditavelmente espertos a
ponto de não se apaixonar.
Coloquei a bomba na boca e
senti o amargo agradável do chimarrão. Mais do que nunca, estava acordado. Será
melhor para ele, pensei. Livrar-se o quanto antes da pistoleira. Há tempos, eu
sabia, a coroa ostentava o status de
nora de médico na frente das amigas da orla e o filho do médico recebia lições
hedonistas de uma versão ambiciosa e desesperada da Sylvia Kristel. Não. Eu não
sabia do menino, mas estava ciente daquele tipo de mulher que rondava a orla.
Eu já tinha encontrado algumas variações sobre o mesmo tema no interior do
continente — bem longe do mar. Em 98, eu conhecia bem o perigo que as
facilidades trazem. Eu evitava o torpor das facilidades. Procurava o caminho
mais irregular e cheio de obstáculos possível a fim de manter os olhos
acordados e a mente bem lúcida.
Quando amanheceu, tomei um
banho e fui vigiar os dois.
Nem o café preto e forte
obrigou-me a entrar de uma vez na cozinha. Reinava um silêncio abismal que só
foi quebrado pelo liquidificador na velocidade máxima. O herói empertigado. Levantava
o copo do aparelho quando a mulher começou a falar. Congelei. O garotão do
papai, forte como um badejo, cifrão tatuado no braço, estava no início do gole!
Vai se afogar, eu pensei. A mulher, irritada, parou no meio da frase. Dois
olhos em cima de mim. Ela pediu licença. Eu, desculpas.
Frustrado, resta-me até
hoje imaginar o momento da revelação. Naquela manhã quente de outubro, eu fui
tomar o meu desjejum na lanchonete da faculdade minutos antes da minha aula.
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