DIA DE MARCINHA >> Zoraya Cesar
Sem mais nem menos, do nada, resolveu arrumar a bagunça da casa. Começou pela estante de livros. E lá em cima, na última prateleira, encontrou uma coletânea de cronistas mineiros, como Fernando Sabino e outros. Cansada antes mesmo de começar a limpeza, desceu da escada, sentou-se no sofá e abriu o livro, aleatoriamente.
Caiu na história de uma mulher que, ao ouvir do marido que ser traído era a menor de suas preocupações, pois ela já não era nenhum brotinho (linguagem da época), propõe-lhe um passeio, durante o qual provaria o quanto estava errado. Mas ela passa inteiramente despercebida e, ante as provocações do marido, sugere andarem separados, argumentando que a presença dele estava inibindo as aproximações masculinas. Ele caminha atrás dela e vê, espantado, que, realmente, diversos homens olham persistentemente para sua esposa, alguns até viram a cabeça para trás. O que ele não vê são as grotescas caretas que ela faz para chamar a atenção e fingir ser paquerada.
Marcinha ri, nem se lembrava dessa crônica. Ao reiniciar a arrumação, porém, ela sente algo estranho, uma espécie de melancolia mal identificada. Olha-se no espelho, a melancolia transformando-se em susto. Esta sou eu?, duvidou. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face?, perguntou-lhe Cecília Meireles.
Largou a bagunça para trás e arrumou-se linda, maquiada, bem vestida, uma mulher, pensou e não um pano de chão usado. Bateu a porta da casa e saiu para o mundo, disposta a provar a si mesma que ainda era capaz de chamar a atenção, sem precisar de artifícios careteiros ou outros truques desenxabidos.
Andava lentamente, para ver o efeito que sua beleza causava, mas nada acontecia. Era como se fosse invisível, pior, como se não existisse. O que estava acontecendo, meu Deus? Estou velha, feia, o que tenho de errado? Há quanto tempo isso vem acontecendo sem eu perceber? Começou a chorar, borrando a maquiagem, inchando os olhos, agora mesmo é que vou parecer um monstro, e chorava ainda mais. Um porteiro ofereceu-lhe uma cadeira, a vendedora da loja ao lado deu-lhe um copo de água, alguns passantes diminuíram o passo, abutremente curiosos. Ela aceitou a ajuda, agradecida. Ainda havia gente boa no mundo.
E ali, largada como uma boneca de trapo numa cadeira de plástico, bebericando uma água com gosto de ferrugem, filosofou que o mundo girava rápido demais, ninguém tinha tempo de notar quem passava ao lado. É isso, pensou aliviada, não sou eu o problema. E preparava-se para levantar, quando toda sua teoria do mundo que gira cai por terra, estrondosa e pesadamente, ao ver que uma menina (ou mulher, hoje em dia é tão difícil distinguir uma da outra) de short curtíssimo e pernas grossas atraía a atenção dos homens que passavam; uma outra, de saltos altos e cabelos ao vento, também.
Marcinha voltou a afundar na cadeira, a se afogar na água, a se consumir por dentro. O problema era com ela. O porteiro pediu licença e foi atender o interfone. A vendedora entrou na loja, a gerente estava chamando. Cada um voltou para o seu papel na vida. Menos Marcinha, que não conseguia se mexer.
Fiquei velha, concluiu. Ouviu claramente a voz da Tia Belinha, querida e morta, afirmando que “A mulher sabe que ficou velha quando deixa de chamar a atenção na rua”.
Arrastou-se de volta para casa, carregando pensamentos sombrios, como fazer plásticas rejuvenescedoras e hidroginástica, associar-se ao clube de velhinhas das vans, morrer amargurada em plena idade madura. Que injustiça, chorava, logo agora que sou independente e livre, pronta, prontinha para sair arrasando por aí, fiquei velha. De que adianta ser bem cuidada, linda, maravilhosa, se ninguém me olha? E se afogava em lágrimas.
Marcinha finalmente chegou em casa, onde misturou-se resignadamente à desarrumação geral. Estou no lusco-fusco da existência, pensou, antes de entorpecer.
Essa história tem dois finais, e, excepcionalmente generosa que me sinto hoje, apresento-as ao Amigo Leitor, para que faça a sua escolha. Mas, ainda generosamente, lembro que o dia da Marcinha chega para todos.
Você estará preparado?
Para os otimistas incorrigíveis, Marcinha deixou de bobagens, deu início a uma nova fase da vida e tratou de ser feliz. Eu poderia revelar que ela arranjou um garotão, mas aí já seria invasão de privacidade. Não conto não.
Para os pessimistas irremediáveis, vulgarmente conhecidos por realistas, Marcinha deixou de bobagens, assumiu que a idade chega para todas, melhor isso que estar morta, e, afinal, se queria tanto chamar a atenção, que pendurasse uma melancia no pescoço. Deixasse de ser assanhada, isso sim. Eu poderia revelar que, com esse comportamento, Marcinha arranjou uma baita de uma artrite, mas isso seria burlar um segredo médico. Não conto não.
Qual o seu final?
Caiu na história de uma mulher que, ao ouvir do marido que ser traído era a menor de suas preocupações, pois ela já não era nenhum brotinho (linguagem da época), propõe-lhe um passeio, durante o qual provaria o quanto estava errado. Mas ela passa inteiramente despercebida e, ante as provocações do marido, sugere andarem separados, argumentando que a presença dele estava inibindo as aproximações masculinas. Ele caminha atrás dela e vê, espantado, que, realmente, diversos homens olham persistentemente para sua esposa, alguns até viram a cabeça para trás. O que ele não vê são as grotescas caretas que ela faz para chamar a atenção e fingir ser paquerada.
Marcinha ri, nem se lembrava dessa crônica. Ao reiniciar a arrumação, porém, ela sente algo estranho, uma espécie de melancolia mal identificada. Olha-se no espelho, a melancolia transformando-se em susto. Esta sou eu?, duvidou. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face?, perguntou-lhe Cecília Meireles.
Largou a bagunça para trás e arrumou-se linda, maquiada, bem vestida, uma mulher, pensou e não um pano de chão usado. Bateu a porta da casa e saiu para o mundo, disposta a provar a si mesma que ainda era capaz de chamar a atenção, sem precisar de artifícios careteiros ou outros truques desenxabidos.
Andava lentamente, para ver o efeito que sua beleza causava, mas nada acontecia. Era como se fosse invisível, pior, como se não existisse. O que estava acontecendo, meu Deus? Estou velha, feia, o que tenho de errado? Há quanto tempo isso vem acontecendo sem eu perceber? Começou a chorar, borrando a maquiagem, inchando os olhos, agora mesmo é que vou parecer um monstro, e chorava ainda mais. Um porteiro ofereceu-lhe uma cadeira, a vendedora da loja ao lado deu-lhe um copo de água, alguns passantes diminuíram o passo, abutremente curiosos. Ela aceitou a ajuda, agradecida. Ainda havia gente boa no mundo.
E ali, largada como uma boneca de trapo numa cadeira de plástico, bebericando uma água com gosto de ferrugem, filosofou que o mundo girava rápido demais, ninguém tinha tempo de notar quem passava ao lado. É isso, pensou aliviada, não sou eu o problema. E preparava-se para levantar, quando toda sua teoria do mundo que gira cai por terra, estrondosa e pesadamente, ao ver que uma menina (ou mulher, hoje em dia é tão difícil distinguir uma da outra) de short curtíssimo e pernas grossas atraía a atenção dos homens que passavam; uma outra, de saltos altos e cabelos ao vento, também.
Marcinha voltou a afundar na cadeira, a se afogar na água, a se consumir por dentro. O problema era com ela. O porteiro pediu licença e foi atender o interfone. A vendedora entrou na loja, a gerente estava chamando. Cada um voltou para o seu papel na vida. Menos Marcinha, que não conseguia se mexer.
Fiquei velha, concluiu. Ouviu claramente a voz da Tia Belinha, querida e morta, afirmando que “A mulher sabe que ficou velha quando deixa de chamar a atenção na rua”.
Arrastou-se de volta para casa, carregando pensamentos sombrios, como fazer plásticas rejuvenescedoras e hidroginástica, associar-se ao clube de velhinhas das vans, morrer amargurada em plena idade madura. Que injustiça, chorava, logo agora que sou independente e livre, pronta, prontinha para sair arrasando por aí, fiquei velha. De que adianta ser bem cuidada, linda, maravilhosa, se ninguém me olha? E se afogava em lágrimas.
Marcinha finalmente chegou em casa, onde misturou-se resignadamente à desarrumação geral. Estou no lusco-fusco da existência, pensou, antes de entorpecer.
Essa história tem dois finais, e, excepcionalmente generosa que me sinto hoje, apresento-as ao Amigo Leitor, para que faça a sua escolha. Mas, ainda generosamente, lembro que o dia da Marcinha chega para todos.
Você estará preparado?
Para os otimistas incorrigíveis, Marcinha deixou de bobagens, deu início a uma nova fase da vida e tratou de ser feliz. Eu poderia revelar que ela arranjou um garotão, mas aí já seria invasão de privacidade. Não conto não.
Para os pessimistas irremediáveis, vulgarmente conhecidos por realistas, Marcinha deixou de bobagens, assumiu que a idade chega para todas, melhor isso que estar morta, e, afinal, se queria tanto chamar a atenção, que pendurasse uma melancia no pescoço. Deixasse de ser assanhada, isso sim. Eu poderia revelar que, com esse comportamento, Marcinha arranjou uma baita de uma artrite, mas isso seria burlar um segredo médico. Não conto não.
Qual o seu final?
Comentários
A luz estava difusa, mas tenho quase certeza que era Marcinha com um senhor gato, olhando o por do sol no arpoador ontem...