NINA >> Leonardo Marona

Hoje não farei. Não direi por que vim até aqui. Não pedirei a seres irreconhecíveis que me dêem passagem ou justifiquem meu desprendimento. Hoje estou por um fio, e estou feliz. Hoje não quero mais a afirmação de que posso rir. Hoje falarei a sério. Não falarei num futuro composto. Não direi dessa vez: “Hoje vou falar a sério”. Mais importante seria dançar algum jazz verdadeiro. Falarei, de fato, pouco de mim. Certamente – não se engane, falo a mim mesmo – pensarei em Hemingway, Dylan Thomas, em como conseguiram, mesmo sem conseguir. Pensarei em Charles Bukowski, em como, sentado diante da máquina, criou espancamentos em frente às janelas do inverno. Pensarei, portanto, em meu pai. O Demônio da Harmônica cessou toda a música, os pulinhos e passes diante do inevitável tombo, ele está morto, com um baralho cigano dentro do paletó. Pensarei no quanto amo meu pai, no quanto dói não saber dizer simplesmente isso, saber que as coisas não são simplesmente isso. Mas mesmo assim quero quantificar. Quero quantificar tudo que amo demais, quero quantificar. Quero saber se é tudo, nada, força alguma. Quero saber o que me impede de saltar pela janela nu, ensaboado, fugindo da enfermeira, da novela das seis. Mas hoje, já disse, não farei. Hoje vim para ouvir os pequenos pianos. Hoje vim para fazer dos pequenos pianos meus pistões. Que me perdoem Hemingway, Dylan Thomas, Charles Bukowski. Terão de suportar sozinhos a gastrite cósmica. Hoje vim para dizer um amor baixinho. Como o anel que Nina Simone leva ao nariz ao fim da primeira estrofe, cheio de cocaína. Um amor decadente, pianíssimo, que não cabe nos altares e nas filas de sonhos rápidos, como lindas flores de plastificadas. É um amor que se arrasta na guerra para salvar o amputado que agoniza em ventosas vietnamitas. Mas, hoje, nada de tiros, membros amputados, nada será arranhado no olho da noite. Hoje mandarei as famosas leis do amor à merda. Não aquelas com as quais fazemos os votos falsos da nossa falta de tato. Farei as vezes do garoto perdido para apenas me deixar corromper com o ralo do mundo em que já não mais cabe. E onde está a força com que farei? O fôlego insensato de quem realmente começa imaginando terminar o que nem sabe? Onde acaba, Nina, esse estalo de dedos, onde acaba a energia que vem do anel?

Comentários

Leonardo:

Toda vez que te leio, sinto que estou em uma aula de Literatura. Você tem a arte correndo nas veias. :)

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