DO CORAÇÃO >> Eduardo Loureiro Jr.

Por exemplo, quando eu escrevia o que me passava pela cabeça. Ou abria um livro de provérbios ao acaso, pegava a primeira frase em que batia os olhos e escrevia uma crônica. Ou parodiava o texto diário do Luís Fernando Verissimo. Ou disparava críticas contra políticos e autoridades em geral. Ou carregava nas palavras, ironizando as idiossincrasias dos outros. Bons tempos aqueles em que escrever era uma aventura inconsequente -- e eu ainda tinha direito ao trema.
De certa forma, ainda escrevo o que está dentro de mim, descondenso o leite a partir de uma simples frase, admiro o Verissimo, questiono autoridades e carrego palavras. Mas agora tem o meu coração...
Hoje em dia a pressão dos dedos sobre o teclado tem o ritmo lento de 68 batimentos por minuto. Já não é possível escrever sem que as palavras venham, mesmo que ensanguentadas, do coração. Como as que se seguem...
Deve ter começado com as discussões que eu presenciava de meus pais. No princípio, eu fechava a porta do quarto. Depois, além de fechar a porta, comecei a ouvir música. Em algum momento, passei a escrever.
O recolhimento, a música e a escrita são isso para mim: a fuga de uma discussão. Diante da elevação de vozes, da oposição de argumentos, das reclamações, das ofensas, fugir tornou-se uma especialidade. Não que meus pais brigassem tanto assim, porque se eles fossem mesmo constantes em suas discussões, eu seria um iluminado monge, um músico virtuoso ou um escritor genial. Como vocês mesmos podem comprovar, eu não sou. Talvez eu tenha me saído melhor na fuga em si. Fujo com um talento que me permitiria desafiar qualquer outro fujão, mas minha habilidade de fuga é tão pura e elevada que fujo até mesmo desse confronto entre pares.
Fujo das pessoas, porque onde há pessoas existe já a semente da discórdia, da diferença entre os corações. Minha mestra Luiza às vezes reclama que eu, nos encontros do pátio, prefiro a música à conversa. A explicação é essa, Luiza. Eu fujo. E quando o Fábio toca junto -- tornando-se meu cúmplice --, a fuga é perfeita.
Se eu tivesse de pagar algum carma e precisasse escolher uma limitação física, escolheria a surdez. O paraíso pra mim não precisa nem mesmo ser bonito, basta ser silencioso. Quem quiser me irritar basta fazer barulho. A paz pra mim -- acho que já escrevi isso antes -- é mais um deixar de fazer algo do que propriamente um fazer alguma coisa. Não é reivindicação, é aceitação.
Sempre que encontro minhas pessoas queridas, procuro colocar o máximo da minha afeição naquele momento. Porque não sei quando vou vê-las de novo, porque nem mesmo quero vê-las de novo tão cedo. Sou um fugidor fingidor, e até que me saio bem -- embora tenha estragado um pouco os planos ao confessar o crime nesta crônica.
Com as pessoas que convivem comigo todo dia, não há muito como fingir: troco a fuga grande por dezenas de fugas pequenas: para o banheiro, para o computador, para a cama: silêncio, silêncio, silêncio. Penso que a fala é supervalorizada -- mas sou eu sozinho contra uma humanidade inteira, e tagarela. Desconto a pouca fala nas muitas palavras escritas. Não que eu escreva muito bem, mas eu escrevo muito. Escrevo quando quero, você me lê quando quer. Cada um na sua. Não há contato, não há possibilidade de discussão. A escrita flui, a música é ambiente e a porta está sempre fechada -- meu paraíso particular.
De vez em quando arrisco um movimento pra fora -- uma aparição, um encontro, um evento --, mas vou sempre com meu paraquedas e minha rede de proteção: o retorno previsto para minha casa quarto, meu quarto casa.
Já faz tempo que é assim, e é difícil pensar que um dia, talvez, não seja. Mas pode ser que um dia eu sinta uma saudade besta do tempo antigo quase feliz que é agora.
Comentários
Junoca, ri sosinha, lendo sua crônica, pois hoje foi um desses dias que falei demais!
...E meu marido se sentiu muito, muito incomodado! Tá calado até agora.... rsrsrss
Tia Monca
Eu, que só conheço sua voz das músicas que você posta aqui, prefiro, egoisticamente, que seja assim mesmo. :)
para os ouvidos
dos sensíveis de coração.
Curiosidade...seu silêncio se sente confortável com a música?
Super beijo, sempre um presente te ler...
Eu, assim como você, também aprecio muito o silêncio... mas não sei ainda se por fuga ou covardia. Cedo ou tarde, precisaremos ouvir...e falar...
Se assim nos foi concedido o dom, que não o desejemos de outra forma; que aprendamos a escutar e enxergar, para que não se ceguem nossos olhos, nem se ensurdeçam nossos ouvidos.
Se fosse me privar de algum sentido, seria a visão, porque acho mais cruamente invasivo e revelador ver que ouvir.
Mas que o criador me ensine a ver, ouvir e responder adequadamente aos que, tendo olhos, não veem, e tendo ouvidos, não escutam... e tendo a fala, não sabem associá-la à sabedoria de se calar quando não há nada de bom a se dizer.
Caro Eduardo, te desejo uma boa semana, com muitos e preciosos momentos de silêncio.
Marisa, esse é o problema de falar ou escrever demais: a gente "rouba" a fala dos outros. :) Vá desculpando a injustiça.
Debora, quer dizer que não estou sozinho dentro do quarto?
Ana, a música é o paraíso do silêncio. :)
Também prefiro a escrita a fala, o e-mail (mil vezes!) ao telefone. "Escrevo quando quero, você me lê quando quer. Cada um na sua". Perfeito!
E para o silêncio a melhor companheira é incontestavelmente a música. Compartilho com você uma das minhas companheiras no silêncio: http://www.radiouniversidade.com.br/. Não tem propaganda e, muitas vezes, locutor. Apenas música, de qualidade.
"O paraíso pra mim não precisa nem mesmo ser bonito, basta ser silencioso." Eu poderia ter escrito isto.
Beijos