QUEM GUARDA COM FOME... >> Eduardo Loureiro Jr.

Há algumas décadas, quando minha tia médica foi fazer residência em São Paulo capital, minha avó, nascida e crescida no interior do Ceará, deu-lhe um único conselho: "Em terra de sapos, de cócoras com eles." O conselho foi seguido e há cinco anos, quando comemorávamos o aniversário de 80 anos de minha avó, minha tia escolheu a lembrança desse conselho para falar de sua mãe.
Os ditados, ou provérbios, constituem uma sabedoria simples que nós, em nossos delírios de complexidade urbana, já quase não conseguimos entender: para nós, soam simplistas ou moralistas, e quando os repetimos é mais por um hábito de linguagem do que por acreditar em suas palavras.
Entretanto, brinco de imaginar que minha avó poderia ter aconselhado minha tia com um ditado diferente: "Em terra de cegos, quem tem um olho é rei". O provérbio, de sentido praticamente oposto ao anterior, incentivaria não a adaptação mas a auto-expressão diferenciada. Está aí a riqueza dos provérbios: para cada um deles, há um outro que diz o inverso, de forma que há ditados para tudo. "Incoerência", poderia pensar nossa mente racionalizada. Eu prefiro ver outra riqueza valiosa no fundo dessa riqueza "incoerente": a grandeza dos provérbios não está apenas no que eles explicitamente expressam, está na sabedoria de saber usar o ditado certo na hora certa.
Meses atrás, durante um almoço em família, um de meus cunhados falou do seu hábito de guardar a melhor parte da comida para o final e de como sua mulher, minha irmã, tinha o "dom" de chegar justo na hora em que ele estava prestes a saborear seu pequeno tesouro, pedindo: "Amor, me dá esse pedacinho." Depois de muito rir, lembrei daquele outro ditado: "Quem guarda com fome, o gato vem e come".
Sim, há qualquer coisa maravilhosa em se guardar o melhor para depois, ou mesmo para o final: que filme ou história teria graça se o final feliz fosse no começo? Talvez até a sobremesa não parecesse tão apetitosa se tivéssemos por hábito comê-la antes do prato principal.
Eu também tinha esse costume de adiar as coisas boas para torná-las ainda mais atraentes algum tempo depois. Ultimamente, tenho guardado menos e tenho brincado mais de descobrir o ponto exato da vontade: se quero, como; se não quero, passo.
E, ainda brincando de imaginar, fico me perguntando se, para a comida, faz alguma diferença a boca que a come. Talvez não: boca é boca, e o prazer da comida está em ser mastigada. Talvez sim: mais gostosa é a mordida da boca que está com os dentes afiados de vontade. Talvez certamente sim: aquele que come o que o "quem" guardou com fome não é um outro quem, igualmente esfomeado, mas um quê, um bicho, um gato, cheio de deliciosas lambidas e miados.
Ao leitor... que mais lhe apetece ser: o quem, a comida ou o gato?
Comentários
Cada cabeça é uma sentença. Portanto, não sei se dei ao seu texto a interpretação pretensa pelo autor. Mas de acordo com o que entendi o gato leva vantagem. Miauuuuuuuuuuuuuuuuu.
Beijo
No que será que dá isso?
Bj!
Mas, fome e desejo não são a mesma coisa. Com fome -- considerada a melhor cozinheira e a mais rica especiaria -- às vezes come-se sem sentir o gosto. Com desejo, se degusta.
Fome não se guarda, se mata. Desejo se saboreia. *;)
beijo grande, Edu!